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Críticas

Cineplayers

A visão de um grande cineasta por trás do olhar de uma criança.

10,0

O cinema de Satyajit Ray foi influenciado principalmente por dois grandes nomes: o cineasta Jean Renoir e o escritor Anton Chekhov. Do diretor francês, de quem foi assistente de direção em O Rio Sagrado (The River, 1951), Ray herdou em especial o rigor estético, o que explica todo seu apuro técnico e seu manuseio fluente de câmera. Do romancista russo veio a influência nos temas que Ray procurou discutir em suas obras, que se resume basicamente na retratação de realidades tristes, ambientadas na sua maioria em paisagens desoladas, mas privilegiadas por uma abordagem poética e um tanto amarga. Com base nessas grandes referências, Ray construiu um cinema diferente daquele mais popular da Índia. Fugindo dos musicais multicoloridos e do uso dos cenários para a produção de aventuras exóticas, o que o cineasta procurou trabalhar foi no que havia de mais humano em comum em seu país, trazendo ao cinema indiano os princípios reges do movimento neorrealista italiano.

A Canção da Estrada (Pather Panchali, 1955) foi um primeiro passo nessa jornada de Ray, e talvez o mais importante de todos. Não adepto aos popularescos dramas musicais de Bollywood, esse talvez tenha sido o título mais importante do cinema indiano desde a época do cinema mudo, principalmente por ser todo falado no idioma bengali, uma língua minoritária do país, ao contrário da maioria das produções faladas em híndi (a introdução do som no cinema foi ainda mais complicada para a Índia, um país com cerca de 18 idiomas oficiais e mais várias centenas de dialetos). Fora a ousadia de se filmar um filme em bengali, de teor artístico e sem tanto apelo comercial, há ainda a questão da fidelidade à realidade proposta por Ray. Querendo mostrar seu país como um lugar de conflitos também humanos, o maior desafio do cineasta foi convencer não somente o público internacional, como também os próprios indianos.

Foi então que o cineasta confirmou seu estilo não só estético (um capricho na composição de planos impressionante para um diretor iniciante), mas também temático. O desapego como consequência da descoberta de novos horizontes foi sempre o tema mais recorrente em sua filmografia. Seja o velho aristocrata decante preso ao passado e incapaz de enfrentar os novos tempos em A Sala de Música (Jalsaghar, 1959), seja o deslumbramento dos irmãos Apu (Subir Bannerjee) e Durga (Uma Das Gupta) diante da modernidade que começava a se enveredar pela zona rural de seu lar, todo o universo do cinema de Ray gira de uma forma ou de outra em torno do impacto da modernidade sobre um milenar conjunto de tradições arraigado em seu país.  

No caso dos irmãos Apu e Durga, personagens de A Canção da Estrada, tudo é ainda mais impressionante, por se tratar da vida de duas crianças inocentes. Nascidos e criados na pobreza, filhos de uma mãe sofrida e de um pai materialista que está sempre a viajar para ganhar mais dinheiro, os dois são a representação do ser humano em seu estado mais primitivo e natural. Tudo para eles é sempre muito novo e muito impressionante, e a cada dia se aventurando pelas matas que rodeiam sua aldeia é sempre uma nova descoberta. Enquanto deixa a cargo da mãe e da avó representarem o passado indiano, ainda apegado a tradições familiares e religiosas, Ray coloca sob responsabilidade de seus atores mirins trazer uma visão deslumbrada sobre o novo mundo que começava a se formar – e nada melhor do que o olhar inocente e impressionável de uma criança para nos fazer entender isso da maneira mais clara possível.

Três cenas-chave exemplificam as principais intenções do diretor com esse filme. A primeira se desenrola quando o pequeno Apu e sua irmã mais velha Durga, escondidos da mãe, escapam para longe da casa apenas para poder ver um trem passando pela ferrovia. Aquela máquina a vapor penetrando um cenário praticamente virgem, rodeado de matas e campos, é como o anúncio de que aquela modernidade tão procurada pelo patriarca da família se aproximava rapidamente, disposta a mudar o conceito de vida que todos ali mantinham. A segunda se dá quando um grupo de saltimbancos aparece vendendo guloseimas e brinquedos, causando euforia entre as crianças da vizinhança, que os seguem hipnotizadas, gritando e cantando de alegria diante de algo tão simples como um doce. A terceira, por fim, traz os dois irmãos dançando e correndo na chuva, em pleno contato com a natureza do local. Com essas três cenas Ray dá conta de transmitir o que mais queria em seu filme: colocar sua câmera no olhar de duas crianças, tanto para enxergar um mundo novo, quanto para aproveitar o mundo já conhecido. 

Diante de longos planos que retratam a rotina sofrida desse núcleo familiar, Ray discute não apenas a ânsia/desconfiança com a modernidade, mas principalmente o temor do desapego, o medo do conceito de família ser alterado, maculado – ansiedades expostas em especial pela mãe, a mulher submissa, indignada pelo descaso do marido com a família, sempre nervosa e irritadiça. Reside aí a influência principal do neorrealismo italiano, com o diferencial do teor poético presente em cada cena. Mais que um trabalho de cineasta, A Canção da Estrada é um trabalho de poeta, um homem que foi capaz de extrair de situações tão cotidianas uma beleza singular, explorada ricamente pelo alcance profundo de sua câmera, seus planos amplos e contemplativos, e a fotografia em preto e branco arrebatadora de Subrata Mitra (colaborador recorrente de Ray).

Este é o primeiro capítulo de uma trilogia, ou saga vivida pelo personagem Apu, que seria completada posteriormente pelos filmes O Invencível (Aparajito, 1956) e O Mundo de Apu (Apur Sansar, 1959). A trilogia no geral talvez seja a maior representação da combinação de elementos que compõe o cinema poético e sensível de Satyajit Ray – uma mistura de realismo, poesia, amargura e irrepreensível técnica (tudo que Danny Boyle tentou fazer sem sucesso no falho Quem Quer Ser Um Milionário [Slumdog Millionaire, 2008]). Apesar de percebermos muito de Renoir nestes filmes, o que prevalece o tempo todo é a sensação de estarmos vendo algo novo e empolgante – afinal, é da vontade de Ray que seus espectadores sejam assim como seus personagens principais de A Canção da Estrada: crianças inocentes diante de uma nova descoberta.

Comentários (10)

Conde Fouá Anderaos | segunda-feira, 24 de Setembro de 2012 - 15:58

De qualquer forma esse dado não diminui a qualidade do texto.

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 25 de Setembro de 2012 - 08:34

Finalmente um textaço sobre esse filme.
Muito bom mesmo,bem escrito,fala com precisão do filme e de Ray.

Preciso ver mais dele.

IVO CARDOSO MELLO | segunda-feira, 01 de Outubro de 2012 - 22:16

Texto interessante. Preciso conhecer o cinema indiano. Esse filme nem tem comentário.

Reginaldo Almeida | sábado, 23 de Agosto de 2014 - 21:06

Nota 10. não tem como ser menor. Parabéns🙄 Seu comentário também é 10.

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