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Críticas

Cineplayers

Castelo assombrado e suas passagens secretas.

6,5

Um silêncio insuspeito.
Um pico da trilha.
Um sobressalto no escuro.

Os artífices que operam em um susto são velhos feiticeiros remanescentes de rodas em fogueiras e histórias de viajantes, muito antes de qualquer coisa remotamente parecida com cinema habitar a doida imaginação dos homens.

Quando Gustavo Hernández ganhou US$ 6.000,00 para fazer seu primeiro longa-metragem, sabia que se o projeto simplesmente funcionasse enquanto filme comerciável já seria um grande milagre. Uma ou duas fontes de luz, uma dúzia de pessoas na equipe e somente uma câmera (digital). A Casa (La Casa Muda, 2010) deve sua notoriedade e sua própria existência às circunstâncias em que foi filmado. Todas as decisões criativas derivam de suas limitações técnicas, começando pela própria ideia de filmar um terror. Com pretensões tão baixas (mas ao mesmo tempo tão altas), Hernández refugiou-se no horror, gênero que rastejou entre seus pares ao longo do último século como um espécime pseudoartístico, movido a futilidades e truques baratos. Se muito pouco é necessário para filmar um horror eficiente, muito mais claro ao espectador se revela a mão do cineasta. Despido de um roteiro elaborado, de um texto com pretensões literárias, de interpretações grandiosas e demais elementos que forjam a 7ª com a liga de todas as outras artes, desponta límpida e translúcida a mise-en-scène do seu autor. Nada mais adequado portanto, a um diretor novato louco para mostrar serviço, do que abraçar este horror marginal, o menos nobre dos grandes gêneros, em um filme que tenta desesperadamente não se trair em um erro de movimento ou no reflexo de um espelho.

Hernández sabe que numa produção independente (e mais ainda em um projeto micro-budget) vale antes o poder fazer do que o querer fazer, por mais que o segundo encontre maneiras improváveis de se sobressair ao primeiro. Os três passos descritos no topo do texto definem toda a dinâmica de A Casa, uma lógica que o cinema, como arte nova e provinda que é, incorporou com naturalidade. Se em um terror comercial ela é usada como uma ferramenta a mais para criar tensão, aqui é empunhada como único recurso disponível. É somente em função dessa fórmula que todos os esforços serão empenhados.

O uso de uma única câmera e a ideia do falso plano-sequência até fecham várias possibilidades, mas abrem outras bem interessantes. Primeiro que a existência de apenas uma perspectiva submete quase que naturalmente o filme de Hernández à força do fora de plano. A iminência de perigo, matéria-prima de A Casa, é alimentada por tudo que circunda a câmera e seu ponto inviolável de foco: Laura. O espectador depende de cada movimento de Laura como se houvesse cabos invisíveis amarrando ela à câmera. Com exceção de um ou dois momentos, jamais vemos o que Laura vê. A limitação de recursos traz também uma interessante limitação do olhar. Sem a incidência do corte e demais artifícios que denunciem a falsidade de seu universo, A Casa mantém o espectador muito bem trancado dentro de si apesar de uma imediata contradição desta ideia (e que poderia colocar tudo a perder): a atenção do espectador para a existência de uma câmera no ambiente é algo incontornável.

A Casa tem ares bem óbvios de mockumentary, porém com uma diferença fundamental: a existência da câmera transparece, mas não é jamais assumida pelo filme (nem deveria). A solução encontrada para que a ilusão não se quebre é exatamente outra vez a fidelidade da lente sobre Laura, de tal modo que a câmera não adquire uma volúpia própria, pelo contrário, está sempre presa à sua protagonista, sempre à mercê de sua vontade. A noção de solidão que ela enfrenta termina sendo muito mais forte do que os efeitos colaterais da câmera na mão. Hernández concebe uma imersão por demais profunda para ser vencida pelos momentos de negação da realidade, meramente intermitentes diante da maciça constância da atmosfera.

Como ponto dominante em cena, Laura é também um alvo vulnerável. Em A Casa, o espaço exerce a todo o momento sua opressão sobre o corpo. Teme-se não pelo que a câmera mostra, mas pelo que foge ao seu enquadramento, parte em que som e iluminação possuem especial importância. O perigo não vem jamais pelo campo que a lente capta, composto basicamente por Laura, um lampião e muitos cantos escuros, mas pelo que está aos lados e principalmente atrás da linha de visão. Passos no andar de cima, uma sombra que se move, indícios de uma presença que não é revelada ao espectador, aqui sob a égide mais elementar de sua velha definição: um ente passivo, submetido à ilusão do perigo mas incapaz de virar o pescoço para apreender a origem do hálito quente que lhe desperta os pêlos da nuca. Em determinada cena, é um braço que salta de trás da câmera e agarra Laura pelos cabelos; em outra, é Laura que lança seu olhar para o que está às costas do espectador, caminhando em sua direção enquanto este dá passos sem saber para onde vai.

É claro que A Casa tem problemas, a passar pelo fato de que se sairia muito melhor como média-metragem (os vários minutos que Laura desperdiça investigando paredes são completamente estéreis), mas isso significa ignorar uma das premissas que, afinal de contas, levaram-no a Cannes, Sundance e ao Festival do Rio, que deram ao filme este raro espacinho no circuito, o que sinceramente me parece seu maior mérito.

De tudo isto fica a escolha do horror como abrigo quando não há quase nada a ser feito. O mais suscetível dos gêneros às intempéries da mente por trás da câmera, o mais permissivo às insanidades do artista, o mais lúdico e dissoluto. Quando não restarem mais as ideias e os recursos, quando desaparecerem as pessoas e até os equipamentos, o horror sempre terá condições de oferecer três coisas: um silêncio insuspeito. Um pico da trilha. Um sobressalto no escuro.

Comentários (1)

Alexandre Koball | sábado, 13 de Agosto de 2011 - 16:45

O filme se vende como tendo apenas um grande plano, quando é óbvio que isso é mentira. E depois de [REC] é tudo tão chato...

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