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Críticas

Cineplayers

A Espiã discute a guerra sem deixar de entreter o espectador.

7,0

Paul Verhoeven firmou seu nome em Hollywood a partir da década de 80, com filmes como “Robocop” (1997), “O Vingador do Futuro” (1990) e “Instinto Selvagem” (1992). Todos grandes thrillers de ação, variando a pegada ora para o lado da ficção-científica, ora para o drama policial. Mais além do preconceito, é preciso falar das qualidades intrínsecas de sua obra, presentes justamente na construção de uma linha imperceptível e indivisível entre o entretenimento e a fruição estética. Sem notar, o espectador distrai-se com uma narrativa atraente e de fôlego e, ao mesmo tempo, poderosa em alinhavar questionamentos relevantes sobre a natureza humana e seus desdobramentos na vida em sociedade.

A Espiã” (2006), longa mais recente do diretor, tem o mérito de mostrar com mais clareza a eficiência do método de Verhoeven em juntar diversão e reflexão, entretenimento e arte, o industrial e o artesanal do cinema. De volta à sua Holanda natal, ele mesmo escreveu o roteiro dessa história ambientada na Amsterdã do final da II Guerra Mundial, em conjunto com Gerard Soeteman.

O Bom e o Mau

Estamos na Holanda ocupada pelos nazistas em 1944. Rachel (Carice van Houten) é uma judia holandesa cuja família é morta por soldados alemães numa tentativa frustrada de fuga para a Bélgica. Após a tragédia, ela se junta a uma facção da resistência holandesa em Amsterdã, liderada por Gerben Kuipers (Derek de Lint). Numa falha do grupo, responsável pelo contrabando e fornecimento de armas para os holandeses insurgentes, alguns de seus membros são capturados. Rachel, então, é investida da missão de se infiltrar no quartel-general da SS nazista, a fim de seduzir seu oficial maior, Ludwig Müntze (Sebastian Koch, de “A Vida dos Outros”), e assim colaborar no plano de soltura dos membros da resistência ali encarcerados. Ela se torna Ellis de Vries, amante de Müntze.

A forma de conduzir a aventura de Rachel em seu papel de espiã é aquela em que Verhoeven se sai melhor – o thriller de ação e mistério. A narrativa baseia-se sobre uma linha-mestra – quem são os responsáveis pela delação de famílias judias aos nazistas. A partir daí, as cenas de ação, e as conseqüentes reviravoltas da trama, sucedem-se uma atrás da outra, prendendo o espectador à cadeira, e seus olhos, na tela. Há a seqüência da emboscada da família de Rachel, da qual ela é a única sobrevivente; a da fuga para Amsterdã num caixão de defunto; os atentados terroristas da resistência holandesa; a prisão de alguns de seus membros; a tentativa de resgatá-los; a transformação de Rachel/Ellis em traidora. Isso apenas para citar as principais. É por intermédio dessa sucessão de cenas de ação que os personagens vão tomando forma e rosto, ou melhor, vão mudando de forma e rosto. O “quem é quem” dos tempos de guerra é definido de modo dinâmico, em consonância com os desdobramentos do thriller; um período de exceção no qual fica ainda mais difícil separar os bons dos maus. Em “A Espiã”, eles estão por toda parte, surpreendendo o espectador.

A História, com H Maiúsculo

O compromisso de Verhoeven não é com a verdade histórica em termos factuais. Nesse sentido, o filme contém uma série de imprecisões e erros. Por exemplo, no final da ocupação nazista na Holanda, os trens já não circulavam mais, não havia bicicletas como a utilizada por Rachel/Ellis, e nem os aliados assumiram os QG’s nazistas da forma como a representada. Mas isso pouco importa. Verhoeven está comprometido com o espetáculo cinematográfico e, por essa razão, tais inverdades se justificam.

Paradoxalmente, ao abrir mão da preocupação com os fatos históricos em si, “A Espiã” consegue um resultado fascinante em termos de outro tipo de verdade histórica: aquela que diz respeito ao espírito e mentalidade das massas numa situação como essas. É assim que vemos o anti-semitismo já existente entre os holandeses bem como o comportamento vingativo em relação aos colaboracionistas. Como se, ao abandonar a verdade em termos estritos, Verhoeven pudesse adentrar verdades mais profundas, disfarçadas pela realidade.

E, assim como começou, o filme termina embaralhando tal sentido de realidade e, sobretudo, de sua percepção. Quem é vilão e quem é mocinho? Se é que eles existem dessa forma, unidimensionalmente. Assim como o cinema, que não é apenas arte nem só indústria de entretenimento. Verhoeven sabe muito bem disso.

Em tempo: Carice van Houten e Sebastian Koch começaram a namorar nas filmagens de “A Espiã”. Pelo excelente desempenho da atriz holandesa nesse filme, ela foi contratada para o principal papel feminino de “Valquírias”, nova produção de Tom Cruise, também estrelada por ele. Trata-se da refilmagem de um longa alemão recente sobre o atentado frustrado contra Hitler cometido pelo barão von Stauffenberg. Curioso que no longa alemão é Sebastian Koch quem interpreta originalmente o papel que será de Tom Cruise. A estréia está prevista nos EUA para outubro deste ano.

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