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Críticas

Cineplayers

Um mergulho na identidade.

9,5
No final dos anos cinquenta, o Japão de dez anos após o fim da guerra enfrentava uma grande crise de identidade. O país de fortes tradições culturais via o florescimento de novos costumes, tecnologias e modismos ocidentais, especialmente norte-americanos. Mais ou menos a essa época, os principais estúdios japoneses, Shochiku e Nikkatsu, visavam sair da crise elaborando uma resposta aos novos cinemas que tomavam o mundo de assalto. Foi mais ou menos essa a origem da Nuberu Bagu, que refletiu a modernização acelerada daqueles tempos confusos, onde questões como existencialismo, sexualidade e política afloravam e se entrelaçavam com frequência.

Mas enquanto as produtores revelavam nomes que se tornariam proeminentes depois como Nagisa Oshima, Yoshishige Oshida, Seijun Suzuki, surgiu um nome independente, Hiroshi Teshigahara, universitário egresso dos documentários que iniciou em 1962 uma parceria de sucesso com o escritor e roteirista Kôbo Abe e o musicista avant-garde Toku Takemitsu, colaboração que debutou com A Cilada (Otoshiana, 1962), onde vivos e mortos interagiam em uma história ao mesmo tempo visceralmente realista e simbolicamente onírica e então foram catapultados para a consagração com A Mulher da Areia (Suna no Onna, 1965), filme de forte teor existencialista sobre um homem que é aprisionado em um buraco na areia junto a uma mulher, com a exótica prisão aos poucos se tornando o referencial do indivíduo para perceber o mundo. Com isso, foi conquistado o Grande Prêmio do Júri em Cannes e indicações ao Oscar de Melhor Diretor e Melhor Filme Estrangeiro.

Teshigahara traduzia como ninguém em imagens o universo de Kôbo Abe, escritor comparado a Franz Kafka e Alberto Moravia em suas descrições de situações contemporâneas da sociedade burguesa-industrial abordadas de maneira simbólica e muitas vezes fantástica. Teshigahara adotava uma atuação menos física e mais realista, jogava com a montagem e com a construção de pontos de vista, de modo a construir realismo e delírio apenas com o modo como a câmera se impunha dentro do espaço diegético, com quebras de espacialidade, composições em profundidade, câmera na mão, inserções de pontos de vista estranhos e propositalmente significantes de algo além do quadro, cortes secos na transição entre uma cena e outra. Valia tudo para criar um universo que falava sobre questões às quais estávamos enfrentando todos os dias de uma maneira extenuante, com personagens vendo seus piores medos subjetivos se materializarem em demônios sociais concretos.

É o caso de Senhor Okuyama, protagonista de A Face de um Outro (Tanin no Kao, 1966), a obra que sucedeu A Mulher da Areia. Desfigurado por um acidente industrial, o homem coberto de queimaduras graves é obrigado a cobrir seu rosto e suas mãos com bandagens, o que o perturba imensamente; sente-se solitário e incapaz de lidar com as pessoas, como afirma para a esposa, e a barreira que o impede de viver uma vida normal em sociedade logo o faz enfrentar um processo de despersonalização, progressivamente se encarando menos e menos como um indivíduo.

Na busca por reagir contra sua existência ameaçada, Senhor Okuyama paga a um médico, Doutor Hira, para fazer uma máscara baseada em um rosto humano que o permita andar sem vergonha nas ruas novamente. Mas como irá assumir uma nova identidade, o médico o adverte que essa “face de um outro” pode provocar uma desassociação do seu “eu” original, uma vez que pode não mais se identificar com seus antigos valores e limites.

E é o que acontece: Okuyama embarca em uma espiral psicótica. A temática de “parecer e ser” se assemelha com os conceitos existencialistas de existência e essência, onde uma vida só adquire sentido concreto através da ação. Okuyama, se identificando como um homem, vai a limites que nunca imaginou quando cria um outro “eu” para si, buscando novas significações, alugando um novo apartamento perto do seu antigo e tentando seduzir a sua esposa sob sua nova identidade.

Em alternância com essa história, há uma segunda, de menor extensão e análoga à história de Okuyama, sobre uma jovem desfigurada pela bomba atômica que trabalha em um asilo para veteranos da Segunda Guerra. De maneira semelhante ao protagonista, ela sofre de imensa solidão e carência, que somado com o medo de uma nova guerra e uma vergonha de interagir socialmente, desenham um quadro depressivo cada vez mais agravado. Com um contexto social mais explícito, a história evoca em imagens enxertadas e nos diálogos essas angústias internas que a afastam de tudo.

Analogamente, Okuyama age de maneira cada vez mais agressiva, sujeito a rompantes violentos de fúria quando está frustrado e decepcionado. Perpassa no filme a ideia da monstruosidade e sua relação a ver com o simples ato de parecer um (apenas existir) e o fato de agir feito um (abandonando toda ética para provar pontos de vista absurdos - como colocar a fidelidade da mulher em xeque). Em sua busca de tornar-se novamente um indivíduo, o personagem já não consegue mais se identificar como uma personalidade única e indistinguível.

A Face de um Outro não estabelece exatamente um universo particular com regras, como era o caso dos espíritos de A Cilada nem reside sua força em sua locação como acontecia em A Mulher da Areia, o que reforçaria a sensação de realismo pela câmera; é o filme mais livre de Teshigahara; seus momentos fantásticos surgem sem explicação preocupada com a verossimilhança; o filme troca de personagens, de cenários e de pontos de vista e pula de cena a cena a todo momento.

Um dos momentos mais emblemáticos e vanguardistas é quando Teshigahara filma seu protagonista flertando com a ideia de uma nova identidade no consultório do cirurgião plástico. Posiciona seu rosto atrás de uma silhueta da anatomia humana; em outro momento, é inserido um raio-x de seu esqueleto enquanto fala; quando o diretor enquadra o rosto enfaixado de perfil sobrepondo o rosto inteiro e jovial do médico, de frente. A todo momento, a câmera nos lembra o quanto a questão de identidade é também um construto social, cada vez mais acentuado e questionado pelos novos tempos.

Pela lógica sartreana onde “o inferno são os outros”, o personagem só se sente pleno enquanto é aceito como indivíduo pela sociedade; mas a sociedade é onde também os limites de sua personalidade são desenhados, tornados concretos à medida que avançamos em nossa relação com a mesma. Isso tudo é contexto de um terceiro ato que, se menos inflamado que os primeiros dois, aproveita-se de já ter todas as questões estabelecidas para aprofundar os sentimentos de seu personagem e explorar a reação dos outros às suas atitudes e com isso tudo criar cenas de puro delírio, com a sequência final complementando o resto do filme de maneira ainda mais perturbadora. Sem responder perguntas, sem concluir a história de forma lógica, mas objetivando fechar o círculo de perguntas e impressões. 

Em uma história que pergunta “quem sou eu?” e “qual identidade eu projeto sobre o mundo?”, aplicam-se poucas reviravoltas sobre a história, com poucos elementos centrais sendo trabalhados à exaustão e desdobrados na criação de imagens que explorem a linha tênue entre a liberação dos impulsos e a construção de um ser único em uma sociedade cheia de histórias semelhantes. A câmera de Teshigahara explora por trás das máscaras sociais, olhando para tudo que é sensível e vergonhoso, e não faz julgamentos de valor a respeito dessa faceta da condição humana, com a trilha sonora, sempre rarefeita e fantasmagórica, se valendo de uma combinação de silêncios e ruídos, contribuindo especialmente para criar uma sensação de dissonância desconfortável, em busca de si mesma. Um filme “incompleto” por excelência, que se reinventa a todo momento.

A “invenção” do eu é como o próprio cinema: a construção de uma representação, um horizonte de expectativas, e sua mudança abrupta é mesmo confusa uma vez que o referencial é trocado - uma vez que o indivíduo se transfigura diante de nossos olhos, com o espectador vendo o passo a passo, ficam as perguntas: que filme estamos vendo agora? Quem será ele? De que referencial partir agora?

A radicalização do que havia apresentado nos dois últimos custou caro: sucesso no Japão, o filme foi pouco estimado por crítica e público no resto do mundo, não alcançando nem um pouco da unanimidade que o predecessor conquistara - mas com o tempo, as perguntas e as lentes contundentes de Teshigahara angariaram vários admiradores, consagrando o filme como uma das grandes obras-primas da Nouvelle Vague Japonesa e dos anos sessenta no geral, entrando para história como elemento importante para refletir sobre algumas das principais temáticas filosóficas e estéticas das últimas décadas. Fruto e criador da sua época, A Face de um Outro é uma obra central para conhecer, compreender e cair de admiração por aquele período histórico único do cinema japonês, com Hiroshi Teshigahara consolidado como um dos seus maiores artistas, com uma influência na defesa de um cinema livre e sem fronteiras em sua abordagem profunda e sem volta de temas incômodos ainda sendo sentida nos dias de hoje.

Comentários (4)

Nilmar Souza | quarta-feira, 09 de Março de 2016 - 12:00

Dá pra quotar esse filme inteiro e colar numa parede.

Abe Gênio.

Ravel Macedo | quarta-feira, 09 de Março de 2016 - 12:12

Puta obra-prima mesmo.

Rodrigo Giulianno | quinta-feira, 10 de Março de 2016 - 13:46

Hiroshi Teshigahara é um dos maiores da história do cinema...pelo menos ...3 obras primas

Pedro Degobbi | segunda-feira, 14 de Março de 2016 - 17:17

Puta filme do cinema japonês - e olha que para eu gostar de um filme japonês é difícil.

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