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Críticas

Cineplayers

Questionando a necessidade e a cegueira da fé.

7,0

(Cobertura do Festival do Rio 2008)

Selecionado para a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2008, Matheus Nachtergaele estréia na direção mostrando a mesma coragem de seus trabalhos como ator, tencionando tabus e pousando os olhos sobre um pedaço de nossa sociedade que é pouco visitado. Chamando a atenção para a região amazônica, o diretor - e também roteirista – opta por adentrar num de seus aspectos mais fundamentais: a fé.

A necessidade de afastar o fantasma da morte é retirada do contexto da metrópole para entranhar-se pelo interior do país, apontando para a disputa de poder que sempre é construída ao redor disso, da fé legitimada e da falta de fé como contrapontos e características do mesmo jogo. Alguns personagens personificam a consciência sobre a tal festa da menina morta e a esvaziam de importância, tentando assim se opor à fé cega que domina a todos na comunidade onde Santinho (Daniel de Oliveira) é um líder religioso que opera milagres sobre os quais pouco se explica. O foco é ajustado para enquadrar as várias facetas desse homem que oscila entre o sagrado e a profanação de muitas regras da moralidade, ainda que seja inocente quanto a algumas delas.

Manejando com brutalidade o poder que exerce sobre as pessoas que o cercam, Santinho é ajudado pelo pai (Jackson Antunes) que passa os dias a beber e a disseminar histórias sobre os ‘poderes’ do filho, abastecendo o imaginário da comunidade com notas sobre sua santidade e mantendo vivo o mito de sua existência e a obrigatoriedade do respeito para com ele. Reverenciado e temido por todos, ninguém de fato entende a natureza dessa figura afeminada e exótica demais para o local, sendo Santinho uma das poucas pessoas de pele clara e beleza física clássica, ajudado por isso na construção de sua mitologia pessoal.

Toda a ação do filme se desenrola durante os preparativos da vigésima festa em homenagem à menina morta chamada Cecília e cujo vestidinho rasgado é símbolo de adoração. Santinho diz receber instruções e mensagens da menina, que serão reveladas durante o festejo, envolvendo a queima de várias oferendas que a população local entrega em troca da realização de um desejo. O festejo começa a ser questionado por Tadeu (Juliano Cazarré), o irmão da menina, quando os organizadores aceitam o patrocínio de uma marca de cerveja, transformando assim a festa, de coisa popular em espetáculo com direito inclusive a um show muito pitoresco. O pai do santo demonstra sem autocrítica a própria ambição em torno da figura do filho e de seu poder na comunidade, impedindo-o de manter contato direto com a comunidade, ficando Santinho, portanto confinado ao cuidado de algumas devotas e de seu pai.

Aprisionado nessa redoma do mito intocável e incontestável, o santo precisa manejar cuidadosamente todas as suas ações, escravizando e sendo escravo dessa comunidade carente de esperanças, jogando um jogo que aos poucos corrói sua sanidade.

A direção de Nachtergaele demonstra um parentesco direto com o cinema do amigo Cláudio Assis, valorizando a crueza, o sangue e a carne, a humanidade não-maquiada e natural. As cenas da morte da galinha e do porco são bons exemplos disso e estabelecem o paradoxo entre uma humanidade plena e deificação de um rapaz. Delicado foi perceber o quanto o diretor esteve encantado com seu primeiro filme nas muitas inserções de seqüências aparentemente sem utilidade para o enredo, demonstrando mais a fruição estética de alguém que pela primeira vez teve a oportunidade de mostrar aos outros os caminhos que percorrem seu olhar e sua atenção.  A música tema da menina assim como a fotografia de Lula Carvalho compõe muito bem a ambiência da trama. E Daniel de Oliveira, numa atuação quase sempre acertada, derrapa em alguns momentos difíceis de um personagem difícil, sem por isso deixar de merecer nosso crédito.

Um filme de digestão difícil devido à grande mistura de estereótipos e práticas pitorescas  - que alguns apontam como desagradáveis e desnecessárias -, todas reunidas no barco navegado por um rapaz que vive anulado pela presença física do pai. Dividirá opiniões e incomodará, com certeza.

Comentários (1)

Lairton Flores | segunda-feira, 16 de Janeiro de 2012 - 20:21

Incomodará, com certeza. Não sei, é um filme bem cru e num ritmo moroso e melancólico, onde a história de fato, poderia ser contada em poucos minutos, mas se desenrola em quase duas horas. Sim, vale pelas grandes atuações de Daniel de Oliveira e de outros atores não conhecidos, mas, como disse no inicio, incomoda, com cenas desnecessárias para o entendimento da relação de incesto homossexual do protagonista. É um filme bem mais reflexivo e profundo, do que cinema de entretenimento.

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