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Críticas

Cineplayers

O estrangeiro e sua trupe de iguais.

9,0
Uma muda. Uma criatura. Uma negra. Um gay. Para onde olhamos, esse quarteto poderia ser chamado de heróis? A partir de agora sim. Guillermo Del Toro, um diretor mexicano filmando em inglês nos EUA, com uma mensagem clara sobre o ontem e o hoje, decidiu que era hora de ultrapassar mais algumas barreiras sem esperar mais nada. Em seu novo longa, de uma forma pouco sutil fala-se política, mesmo sem ser político; afinal, se um grupo formado por minorias é alçado à categoria de mocinhos em uma trama passada nos anos 50 e o principal vilão do longa é um típico cidadão médio norte americano, com uma família bonita e bem estruturada e que ainda assim comete os maiores disparates em "nome do dever", a mensagem claramente está sendo enviada e compreendida. Já pensou se vocês ficam sabendo que no fim das contas eles ainda são ajudados por um estrangeiro, que polêmico seria?

Nada é por acaso, e além de política Del Toro faz Cinema, e não um de difícil acesso. Na verdade, A Forma da Água talvez seja sua guinada mais absoluta na direção de conquistar plateias. Buscando a fantasia, o ideal do amor romântico, o gênero e essa super pitada política, o diretor de O Labirinto do Fauno talvez nunca tenha sido tão ambicioso, e ao mesmo tempo tão singelo. Repleto de referências cinematográficas da década onde ambienta sua trama (principalmente O Monstro da Lagoa Negra), o longa é um primor de realização em todos os níveis, e talvez consigamos assistir e atinar para o tanto de cenas clássicas que Del Toro deliberadamente tenha escrito e concebido, sem artificialismo em tal atitude, mas extremamente consciente do seu poder imagético de longa duração. Poderia citar a cena da dança entre o desfuncional casal principal, o primeiro contato físico entre eles, todas as cenas envolvendo Elisa e a água, e tantas outras, com pinta de que nasceram clássicas.

Os resultados já são vistos, e o mais evidente até agora foi o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o eventual prestígio de ter sido o primeiro mexicano a conseguir tal feito. A extrema identificação popular é um sinal de que os inúmeros apelos do filme alcançam seu intento, que não é refém de um produto apenas popular, mas de uma requintada carpintaria de cinema, tanto em matéria de construção imagética quanto narrativa. Del Toro está especialmente inspirado ao contar essa história que a princípio é "apenas uma história de amor entre a funcionária de uma agência de inteligência americana e uma criatura achada em um rio amazônico". A junção de seus elementos unitários faz do filme uma máquina de construir empatia e uma alegoria política tanto forte quanto gradativamente cada vez menos disfarçada. Utilizando elementos do cinema clássico e incorporando técnicas atuais a sua mise-en-scene, Del Toro desfia esse projeto que é todo e integralmente dele de modo absoluto. Não há nenhuma tirania em afirmar e perceber isso. 

Além da sua disposição de ter o que de melhor o cinema oferece hoje em termos técnicos, o material humano deveria ser o principal ingrediente de uma história que além de tudo exala humanidade. E a argamassa do filme é entregue a um grupo formado por Octavia Spencer, Richard Jenkins, Michael Shannon e Michael Stuhlbarg, que nada mais são se não os recortes pessoais da época retratada, para o bem e para o mal - os quatro estão em momentos muito felizes da carreira ali. Mas se existem dois desempenhos memoráveis em A Forma da Água, são os de Sally Hawkins e Doug Jones. Elisa e a criatura do rio são o espelho da sociedade moderna, que não se reconhecem como estranhos um com o outro, mas que durante a vida foram assombrados pelos fantasmas de serem marginais. Enquanto o trabalho de Doug se assemelha em técnica e qualidade ao que ele e Andy Serkis já fazem atualmente, Sally dá um gigante passo para sair do lugar das excelentes atrizes para o de melhores de sua geração. Sua Elisa não explode e não colide, é uma mulher que procurou passar invisível aos olhos do mundo já que não poderia verbalizar com ele. Ao contrário de outras célebres personagens mudas, Elisa é introspectiva e paralelamente também é ousada e surpreendente, mas tudo isso com uma carga de discrição que só ajuda o trabalho de Sally a ser muito mais brilhante e diferenciado.

A sensação ao término de A Forma da Água, filme de abertura do Festival do Rio desse ano, é que apesar dos descompassos de ritmo no terço inicial, quase como se contasse correndo sua história, Guillermo Del Toro dificilmente não estará no topo das intenções de voto para escolher os próximos melhores do ano das premiações americanas. É fácil observar o consenso em torno de um filme que até mesmo particularmente se assenta superlativo, e que conversa de maneira tão potente com os dias de hoje e ao mesmo tempo homenageia tanto a sétima arte. Uma fantasia melancólica para gente grande.

Visto no Festival do Rio 2017

Comentários (3)

Conde Fouá Anderaos | terça-feira, 13 de Fevereiro de 2018 - 09:08

Pena que o restante da equipe não compartilhe de teu olhar sobre essa obra. Extremamente feliz o teu escrito, assisti ontem o filme e minha opinião coaduna com a tua. Parabéns!

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