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Críticas

Cineplayers

Aldrich e o dispositivo incendiário do ocaso de Hollywood.

9,0
De que artimanhas o cinema se utilizava quando ainda não podia olhar para a câmera e quebrar a quarta parede, denunciando ao espectador a própria farsa? Quando ainda não podia fazer como Jean-Paul Belmondo em Acossado (A bout de souffle, 1960), que, num carro em movimento, olha para trás e conversa com quem o assiste? Grande gesto simbólico do início do fim de um modelo que necessita da organicidade, de um contrato que requer o acompanhamento total do espectador pela narrativa, até que a luz da sala volte a se acender e o encerramento da história seja o fim, também, do esforço para apagar os rastros dela mesma de ''se contar sozinha''. Mas eis que, sabendo a diferença do peso que é cuspir no opressor de maneiras desveladas, como fizeram os músicos brasileiros na ditadura, Robert Aldrich cria, no seio de um modelo industrial dentro do qual ele mesmo estava inserido, uma obra cuja lógica de funcionamento é a de fazer estremecer seu próprio sistema.

Há um momento em A Grande Chantagem (The Big Knife, 1955), antes mesmo do sexto minuto de filme, em que uma jornalista questiona Charles Castle (Jack Palance) sobre uma pintura pendurada em sua sala de visitas. Moderna, européia, ela destoa de tudo aquilo que a pressuposta intimidade entre o grande astro e a voz do público nos dá a entender sobre aquele homem. ''Não gosta mais de arte americana?'', ela o pergunta, só para ouvir como resposta que Castle não sabe sequer diferenciar uma pintura de qualquer outra – ''picture'', em inglês, também se refere a uma denominação para filmes. A questão é que Castle não quer ser mais um astro, não deseja, como sua assertiva revela, fazer o mesmo filme de novo e de novo. Quebrar o contrato para ele significaria retomar certa individualidade, além de salvar o casamento com a mulher que, pouco tempo depois, ficamos sabendo ser avessa ao estilo de vida do marido, estilo que subentende um excesso de exposição, vida caótica e deslizes da redoma matrimonial, a despeito de todo o luxo das estrelas.

E é por isso que, colocado em perspectiva, o filme de Aldrich é o prenúncio dessa insuficiência estilística, organizacional e política que marca o fim dos anos 50 para o cinema de todo o mundo. Se é certo que o modelo dos estúdios hollywoodianos deu luz às dezenas de obras que inclusive viriam a constituir o gosto cinefílico da geração que o superou – ou ao menos tentou -, a nouvelle vague francesa, havia ali, também, asfixiada, uma liberdade para concentrar todo o processo fílmico nas mãos de um único autor, ou ao menos reduzir exponencialmente as demandas dos estúdios, sob as quais pouca interferência podia ser feita, e o diretor não era mais que um agente  da cadeia. E se o esforço da crítica francesa parece paradoxal, considerando que certos cineastas americanos eram autores, a despeito da inserção e longevidade produtiva dos mesmos dentro de tal sistema, o que importa aqui é o desejo de concentrar na figura do metteur en scène maior autonomia criativa. 

Mas não é ao diretor que Aldrich se dirige. Isso seria óbvio demais. Enclausurado no espaço (por que não dizer assumidamente cênico?) de praticamente um único ambiente para toda a duração, Castle, que também é Palace em todos os níveis, transforma-se de um animal tenso e tolhido numa sucessão inteligente de transgressões com todo o mecanismo de transparência da obra hegemônica. Demanda à mulher, em meio a tormenta de uma reconciliação, que não espere dele diálogos sagazes, e revela comicamente ao seu diretor e algoz (diegético?) que, se aquilo fosse um filme, ele já teria levado umas porradas. Ora, haveria maneira mais escancarada de dizer a seu espectador que ele está diante de um dispositivo farsante? Nem que olhasse mil vezes para a câmera. Aliás, se olhasse, provavelmente acabaria tendo que dizer: este filme deveria ser meu também. E nós sabemos muito bem que é.

O caráter teatral, aqui, não parece funcionar como o fizera com todas as obras americanas dos 40 e 50. A encenação proposta se aproxima mais do desejo pelo sopro de liberdade de um filme feito conjuntamente, como percebe-se naqueles realizados por Rivette, Eustache e Godard. Co-criação antes de uma dependência do subtexto teatral, sem contudo perdê-lo de vista. Curiosamente,  A Grande Chantagem encerra-se com uma tragédia anunciada por uma infiltração. Encharcado, o teto da sala de visitas de Castle se torna um dos signos – talvez o mais radical - dessa passagem de um modelo a outro, ou ao menos da insustentabilidade e esgotamento do gigante hollywoodiano. Aldrich é esse infiltrado. E porque tudo no seu filme começa imenso, o tombo adquire outras proporções.   

Comentários (1)

Felipe Ishac | domingo, 15 de Maio de 2016 - 06:03

Muito boa a crítica, Chara.

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