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Críticas

Cineplayers

A Grande Ilusão é um filme de grandes charmes desperdiçadas. Uma decepção.

5,0

Já escrevi outras vezes que poucas coisas me decepcionam mais do que ver potencial desperdiçado. Tomemos o caso de A Grande Ilusão, por exemplo. Escrito e dirigido por Steven Zaillian, roteirista do impecável A Lista de Schindler, o filme conta com um dos mais talentosos elencos dos últimos anos, trazendo não apenas grandes astros, mas atores de altíssima qualidade, em uma história de grandes possibilidades para uma crítica ao sistema político. Tinha, portanto, tudo para dar certo. Mas não deu.

Baseado em uma peça de Robert Penn Warren (já levada às telas duas vezes, inclusive tendo vencido o Oscar de melhor filme em 1949), A Grande Ilusão começa mostrando a candidatura do vendedor Willie Burke ao governo do Estado da Louisiana. Quando descobre ser usado como forma de arrecadar votos para um dos candidatos, Burke revolta-se e decide concorrer por conta própria. Com discursos apaixonados e populismo exacerbado, ele é eleito governador, sem saber o que o espera pela frente.

Como se percebe, é um ponto de partida interessante e com grandes possibilidades para a construção de uma eficiente sátira política, cutucando as arestas do poder e a podridão que o cerca. No entanto, de maneira até inexplicável, o roteirista e diretor Zaillian perde-se após um início promissor, transformando A Grande Ilusão em um melodrama digno de uma novela das oito da Rede Globo: arrastado, dispersivo e interpretado de maneira exagerada.

Como escrevi no parágrafo acima, os primeiros minutos de A Grande Ilusão são uma bela amostra de tudo o que o filme poderia ser. A cena no qual Willie Stark não aceita ser um peão dos políticos é inspiradora, com o discurso emocionado de um homem comum que se revolta contra a inépcia e falta de caráter dos representantes do povo. É uma pena, portanto, que a partir do momento em que Stark assume o cargo, Zaillian se perca tanto no roteiro, com digressões desnecessárias, como na direção, perdendo o ritmo e tornando o filme insuportavelmente arrastado.

A história erra ao exibir displicência na construção do arco dramático dos personagens, especialmente em relação a Willie Stark. O caminho do “caipira” idealista para o político sem escrúpulos é feito num piscar de olhos, sem jamais mostrar a gradativa queda moral do personagem ou mesmo os motivos e tentações que moldaram sua nova personalidade. Esta velocidade do roteiro na abordagem de certos fatos pode ser percebida em outros momentos, como na subtrama envolvendo um romance entre Penn e a Clarskon: de uma hora para outra, a personagem da atriz afirma que o governador a trai, esquecendo que o espectador, até então, nada sabia do caso entre os dois. Talvez até mais do que despreparo, observações como estas são provas claras claro da dificuldade encontrada por Zaillian na adaptação da obra para o cinema.

Além disso, a incompleta construção da jornada do personagem faz com que Willie Stark permaneça um mistério durante todo o filme. O espectador jamais sabe qual a verdadeira natureza do governador, se permanece como um homem do povo ou já se tornou um representante daquilo que odiava. Esta dualidade talvez seja intencional por parte de Zaillian, mas acredito que não. Está mais para um descuido narrativo do que uma opção inteligente.

A compreensão a respeito de Stark encontra obstáculos ainda na interpretação exagerada de Sean Penn. Sou fã confesso do ator (quem não é?), mas aqui Penn se passa no objetivo de construir uma figura que satirize os políticos, com uma composição extremamente caricata, naquilo que os americanos adoram chamar de overact, que apenas colabora para fazer de Stark um personagem menos interessante a cada minuto de filme.

Da mesma forma, o personagem de Jude Law sofre por problemas no roteiro. Como se não bastasse a mesma falta de coerência no arco do seu personagem, Law ainda é prejudicado pela opção de Zaillian em colocá-lo como narrador da história. Esta opção não apenas é desnecessária (a trama poderia muito bem ser construída sem isso), como é a principal causadora dos problemas de ritmo em A Grande Ilusão: lenta, pretensiosa e nada útil, as cenas com voz em off do personagem de Law são simplesmente intermináveis.

Na realidade, a única justificativa para a narração é a tentativa de Zaillian em realizar uma espécie de noir político. O personagem de Law poderia muito bem ser tomado como um detetive desse gênero: misterioso, sombrio e atormentado, um papel no qual o ator parece pouco à vontade. Ainda em termos do noir, Zaillian trata Kate Winslet como uma femme fatale clássica, inclusive com penteado igual ao de Veronica Lake, uma das musas do gênero. Esta abordagem do cineasta – realçada ainda pela fotografia, belíssima – aparece completamente despropositada no filme, jamais soando orgânica à história.

Já que falei em Law e Winslet, a história do romance entre os dois, mesmo em um filme repleto de problemas, é o maior erro de Zaillian. Por algum motivo inexplicável, o cineasta transforma A Grande Ilusão, rica possibilidade de uma acurada e inteligente análise sobre o poder, em um dramalhão de quinta categoria. Deixando de lado os temas relevantes, o roteiro investe tempo em um romance clichê que jamais convence, quebrando o ritmo e nada acrescentando à trama. Além disso, há uma revelação perto do final – a respeito do pai de um dos personagens – que é absolutamente ridícula, uma vez que não é nem relembrada depois, reforçando apenas o equivocado caráter melodramático da história.

E Zaillian continua errando. Como se não bastassem todos estes problemas, o roteiro jamais consegue deixar claro o jogo político feito entre os personagens. Assim, todas as chantagens, manipulações e artimanhas não funcionam como conflito dramático, mas apenas como minutos enfadonhos para o espectador. Mais ainda, a trama acaba levando a um final que, se não chega a ser desastroso, é inverossímil e tratado de maneira superficial.

Somando-se às performances inconsistentes de Sean Penn e Jude Law, o restante do ótimo elenco é completamente desperdiçado. Com pouquíssimo tempo em tela e material problemático em mãos, intérpretes do calibre de Kate Winslet, Patricia Clarkson, James Gandolfini e Anthony Hopkins nada podem fazer exceto figuração como coadjuvantes de luxo. E, convenhamos: não aproveitar o talento de grandes atores como estes é tão ou mais condenável do que desperdiçãr uma boa história.

A Grande Ilusão, no entanto, não é um desastre total. Além do ótimo início e de boas cenas esparsas (o final, por exemplo, apesar dos problemas em relação à história, é filmado com competência), o filme conta ainda com uma imponente trilha de James Horner. O namoro com o noir também rende belas composições de planos, com destaque para o trabalho de luzes e cores da fotografia de Pawel Edelman.

É mais fácil encaixar A Grande Ilusão em uma lista de decepções do que de filmes ruins. Sim, a obra é deficiente, com todos os problemas citados. Mas a expectativa era alta com um elenco e assunto como estes. Poderia ser mais focado na queda moral dos personagens quando em contato com o poder. Poderia ter seguido por diversos caminhos melhores, mas Zaillian optou por fazer um capítulo de novela das oito. Uma pena, pois o cineasta teve coragem de encostar em uma ferida, mas perdeu a chance, de retirar o pus que todos sabem que existe ali.

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