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Críticas

Cineplayers

A inventidade de Tim Burton é algo de impressionante neste filme.

9,0

Tim Burton é um dos diretores mais interessantes e competentes da atualidade. Seja lá qual o projeto em que ele se meta, ficam gritantes a sua elaboração técnica exaustiva, a sua sensibilidade ao tratar das personagens, o seu traquejo em criar ambientes magnéticos. Até cacoetes seus como o humor negro e o gosto pelo bizarro tornam-se boas ferramentas nesse processo de contar bem histórias. E esse ótimo “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” só vem corroborar com a já comprovada capacidade de Burton, trazendo todas as suas qualidades de cineasta em ponto de bala.

Inspirado numa popular lenda americana, o filme se passa em 1799 na pequena Sleepy Hollow, um vilarejo isolado que é atemorizado por um misterioso assassino que decapita as suas vítimas. Para desvendar o caso, é recrutado o excêntrico Ichabod Crane (Johnny Depp) que, logo ao chegar ao local, depara-se com a suspeita de que o assassino seja, na verdade, o fantasma de um sanguinolento guerreiro morto há muitos anos próximo dali. Tentando homenagear antigos filmes ingleses de terror, Burton constrói um filme único à sua maneira ao combinar horror, investigação e aventura com doses de sobrenatural e romance.

O que fica mais evidente quando se assiste a “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” é a singular atmosfera gótica em que o filme é mergulhado. O preciosismo visual de Burton conduz a um cenário aterrorizante e cheio de maus agouros, mas que carrega um ar de fábula e fantasia. Esse cenário mais que um palco para a encenação dos atos é um elemento preponderante que se confunde com a própria história e com os atores. Por isso mesmo Tim Burton não opta por uma técnica preocupada apenas em surpreender ou fazer o espectador pular da poltrona e sim em criar um mundo instigante e específico que prenda a atenção não pela mera expectativa na resolução dos mistérios, mas pelo fascínio e estranheza que aquele mundo desperta.

Esse irrepreensível trabalho técnico advém, antes de tudo, de um planejamento que vai, durante toda a produção, do todo para as partes e vice e versa, ou seja, do roteiro para as locações, atuações e marcações de cena e daí para o que se quer contar, transmitir. Pode parecer um raciocínio óbvio (e é!), mas muitos diretores não conseguem equilibrá-lo: ora é a técnica que se sobrepõe à história, ora o contrário. Tim Burton desde os seus primeiros esboços conceituais cria a ambientação de seu filme aliada ao que será contado e também no set se atém ao pontual como peça do geral, por isso mesmo suas realizações são tão diferentes umas das outras, mas todas coesas dentro de seus propósitos e  reconhecíveis em sua filmografia. 

Esmiuçando um pouco mais o visual de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, cabe citar a meticulosa direção de arte (vencedora do Oscar) com cenários ricos e agourentos envolvidos por paisagens sempre saturadas de névoa, em um ar sobrecarregado e claustrofóbico. O fato de o filme ter sido quase todo gravado em estúdio auxiliou Tim na obtenção de uma paleta de cores limitada por tons frios que, apenas em momentos-chave, se revela mais vibrante – afinal, característica marcante nas suas obras é o exterior espelhando o estado de espírito de suas personagens e aqui isso é patente. Os figurinos elegantes e estilizados compõem as individualidades e excentricidades de cada habitante de Sleepy Hollow – vide, por exemplo, a interessante caracterização dos homens da vila – e a música de Danny Elfmann é intrusiva nos momentos certos. Por alto isso é o que se pode ressaltar, mas o importante mesmo é o conjunto desses detalhes que salta aos olhos em cada quadro.

O roteiro opta por uma abordagem bastante original criando uma mescla de gêneros sem muitos paralelos. Não sei bem enquadrar o filme em nenhuma categoria: não chega a ser terror, embora tenha momentos que remetam a tal (há uma excelente cena em que uma família é massacrada!), tem fantasmas, feiticeiras e bruxarias mas não é uma fantasia, tem investigação mas não é um thriller... A direção ambígua de Burton, as tiradas de humor negro com cadáveres e sangue (há uma passagem bem resolvida envolvendo uma cabeça!) e as várias seqüências de ação colocam mais em xeque tentativas de se classificar “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”. 

Um dos aspectos cruciais para o sucesso do roteiro é o devido delineamento e espaço dado às personagens. O protagonista Ichabod é muito bem escrito e conta com a performance sempre inspirada de Johnny Depp. Aliás, todo o elenco, na maioria formado por veteranos, está ótimo, com destaque para Chistopher Walken medonho em cena e para Miranda Richardson. Faço ressalvas apenas ao modo abrupto como importantes parênteses e resoluções da história são apresentados: muito corrido!

Mais um trabalho caprichado de Tim Burton, “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” é uma nova confirmação da inventividade, do talento e também do ecletismo desse diretor. Mesmo a serviço da alta indústria, Burton não age como um mero carpinteiro produzindo filmes meramente satisfatórios, mas sim como uma artista que concebe obras inteiras e específicas. É esse seu caráter de artista que falta hoje à maioria dos cineastas da indústria. Burton é um bom exemplo, que espero, seja seguido.

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