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Críticas

Cineplayers

A invenção da vida pela imagem.

9,0

Vez ou outra surgem esses filmes especiais, singelos, com um público pequeno (o que torna nossa relação mais íntima com a obra, por mais egoísta que isso pareça), genuinamente imperfeitos, e por isso tão potentes. Daqueles que você guarda com todo o cuidado, não indica para quase ninguém, em uma relação monogâmica possessiva, contando a sua existência apenas para seus amigos íntimos, do peito, somente para as paixões mais intensas, porque sabe que são os únicos capazes de compreender o filme feito você (por mais arrogante que isso seja) e, assim, nos decifrar um pouco. Cinefilia de reflexo capitalista, da qual não me orgulho nem um pouco, mas que ainda guardo resquícios. Lembro-me quando entreguei para um amigo muito querido o DVD de Badgad Café, e insisti incessantemente para que ele assistisse. Quando soube da sua reação extremamente positiva, pareceu que minha própria experiência se potencializou.

Enfim, deixarei um pouco a prolixidade de lado. Tudo isso foi apenas para explanar sobre o meu sentimento com A Misteriosa Morte de Pérola, ao qual fui conferir sem saber absolutamente nada sobre (e fiz questão disso, diga-se), que se encaixa perfeitamente na ideia de “filmes especiais”. Produção pequena, feita em casa, onde o casal – fora do filme – se entrega claramente ao projeto - e como essa entrega se reflexe de maneira latente no resultado final.

Aliás, um filme, além de meio autobiográfico em alguns sentidos, muito pessoal por abraçar completamente à cinefilia e ter consciência de (quase) todas as referências diegéticas e na composição da imagem em si. Sem, todavia, se valer disso enquanto muleta ou boutique: não é necessário ter assistido a Os Olhos sem Rosto para compreender a situação da personagem no filme ou se conectar com o suspense criado – embora isto potencialize a experiência.

Mas pode, sim, ser uma chave de interpretação (e apenas isto), uma janela para olhar a obra, engendrar sua narrativa a partir de uma bagagem cinéfila.

Quer dizer, como não evocar um Polanski ou mesmo Franju ao pensar em toda a claustrofobia da personagem, a sensação de isolamento e solidão? Não se lembrar de A Estrada Perdida, de David Lynch, ao se deparar com a figura misteriosa que assombra a casa? Ou mesmo um Brian de Palma com todo o tom farsesco e meio kitsch de A Misteriosa Morte de Pérola? Afinal, nesse sentido, não há somente a desconstrução do que havia sido mostrado, mas essa mesma crença numa invenção da vida, praticamente, na imagem, mas uma vida própria, sem vínculo necessariamente com o real, ou seja, as possibilidades de criação no cinema.

É como se, em A Misteriosa Morte da Pérola, houvesse uma vida muito particular dentro de um universo imagético – isto é, dentro das imagens de cassete. Promove uma espécie de vingança, capaz somente no cinema, através da retomada de vida no VHS. Fundamental, aliás, destacar também esse caráter fantasmagórico do registro em fita cassete, pois a textura em si, como disse Guto Parente, no debate posterior à sessão, confere uma espécie de memória automática já no momento de gravação, ou seja, o presente nunca se consuma, neste caso, pois a imagem é sempre algo que nos remete ao passado. Por isso é um tanto sinistro as imagens de arquivo de uma morta, sob essa estética.

Muito mais interessante do que tentar desvendar completamente a trama é entrar na brincadeira do casal, abraçar o exercício de linguagem, da cinefilia, de puro amor ao cinema. Não se perder nas referências, mas encontrar nelas um filme autônomo, que anda sozinho. Uma obra sádica, afinal, que reverberará, suponho, nos debates cinéfilos – pelo menos para os que tiverem o privilégio de conferir essa pérola (há!).

Visto no Janela de Cinema do Recife

Comentários (2)

Pedro Tavares | segunda-feira, 03 de Novembro de 2014 - 15:57

Vai passar na Semana dos Realizadores. Imperdível! :)

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