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Críticas

Cineplayers

Obra-prima de Billy Wilder discute sensacionalismo na imprensa através de um discurso que, mais de 50 anos depois, permanece contundente.

9,0

Durante os anos 50, Billy Wilder foi o responsável por alguns dos maiores clássicos não só da década, mas da história do cinema. Com Crepúsculo dos Deuses (1950), causou a ira dos produtores de Hollywood; com O Pecado Mora ao Lado (1955), fez a censura ter pesadelos com as pernas de Marilyn Monroe; já com Quanto Mais Quente Melhor (1959), utilizou homens travestidos que não podiam ceder aos encantos de Marilyn para brincar com a máfia e os estigmas da sociedade. E isso apenas entre suas obras mais famosas daquele período, deixando de lado outras como Inferno nº 17 (1953), Sabrina (1954), Testemunha de Acusação (1957) e Se Meu Apartamento Falasse (de 1960), que por um ano não deixou sua década ainda mais invejável.

Diretor de coragem e refino, Wilder nunca se restringiu a gêneros ou convenções. Sua idéia sempre foi de criar uma cinema forte, comunicativo, que refletia no público aquilo que ele pensava, e não apenas obras para se assistir e esquecer. Reflexão e denúncia. Não é a toa que sua ressonância ainda é forte e permanece atual, mesmo meio século após o lançamento de cada obra citada: todas elas ainda devem ser revisitadas obrigatoriamente pelos amantes do cinema, pois cada uma tem algo a dizer que deve ser ouvido. Neste A Montanha dos Sete Abutres, de 1951, Wilder causou mais uma vez um cataclismo de todo um segmento de indústria ao criticar os jornais e seu modo de fazer e de ser.

Conta a história de Chuck Tatum (Kirk Douglas), um jornalista arrogante e inescrupuloso que perde o emprego em diversos jornais de grande circulação, vendo sua carreira sem rumo o guiar até a pequena e pacata cidade do Novo México, onde arruma um emprego em um jornal discreto e correto. Sua ideia é que aquilo seja apenas temporário, mas vê o tempo passar e sua vida acalmar no interior e no anonimato. Quando um minerador (Richard Benedict) é soterrado em uma montanha próxima dali, Tatum vê a oportunidade que precisava para voltar aos holofotes: dramatizar a história daquele homem, mesmo que para isso tenha que colocar em risco a vida dele e subornar quem for preciso para manter a exclusividade da coisa, entre xerifes e esposas.

Construindo um mundo incorreto, oportunista e sujo, Tatum vê o caso que tem controle na palma da mão crescer e seguir de acordo com seus ideais. Em pouco tempo, aquela situação emergencial com um ser humano toma proporções exponenciais a ponto de ser cobrada entrada por ticket para ver o local onde a drama está ocorrendo - até um circo chega ser instalado na propriedade que antes era preenchida pela ociosidade e pelo feno. Tatum finalmente conseguira o que queria: ser lido por um grande público em uma grande história novamente. Mas a que preço?

Tudo em A Montanha dos Sete Abutres remete ao pior do ser humano: egoísmo, manipulação, joguinhos, a eleição individualizada ao invés de atender os interesses do povo... Servindo como estudo de ética para jornalistas em formação (o filme até hoje é usado em faculdades, assim como Rede de Intrigas), o discurso de Tatum resume perfeitamente o modo de se contar uma notícia: uma história individual, onde um homem apenas está em perigo, vende muito mais jornais do que se forem várias pessoas; afinal, um só é mais fácil dos leitores se importarem, pois você destrincha sua vida, ramifica a história, dramatiza-a, causando mais impacto do que um grupo. E isso é verdade, vide à atenção exacerbada que a mídia dá até hoje a casos individulizados.

Kirk Douglas, um mocinho de crachá e sorriso espelhado, garante à Tatum um ar de ironia que o perseguirá por todo o filme, saindo de sua escolha comum e segura. Inigualável, sua atuação chama a atenção tanto em momentos mais íntimos, como quando este inescrupuloso jornalista fala com o minerador, quanto em sua redenção, que se colidem com os momentos em que ele demonstra sua real faceta - principalmente quando está com a mulher da vítima ou com o xerife interesseiro.

Percebam o olhar: morto e esnobe quando chega na pequena cidade, que não rima com seu discurso, ao mesmo tempo arrogante e desesperado, pedindo salário por um quinto do valor que ganhava até pouco tempo. Esta feição muda completamente quando encontra o minerador: seus olhos ganham vida, esperança, ambição. Kirk faz um trabalho exemplar ao personificar estas mudanças internas do personagem apenas neste detalhe do olhar, passando para o dominador quando todos percebem o monopólio da informação que Tatum construiu até o desfecho, em que poucas palavras são necessárias para completar aquilo que a imagem, com todo o seu poder, nos mostra.

Muito mais fácil de se odiar é a esposa do minerador. Gananciosa ao extremo, desiste da idéia de abandonar o marido graças aos argumentos de Tatum, que precisa da figura da mulher bondosa e companheira ao lado do esposo, mesmo que tudo não passe de aparência; afinal, isso pouco importa para quem está lendo o jornal. Porém, ao invés de companheiro, a víbora quer apenas juntar mais dinheiro antes de abandoná-lo, vendendo seus hambúrgueres e alguns refrigerantes a mais do que fazia na época de calmaria. Já o jovem Jacob, que Tatum abraça como aprendiz, deixa que sua ingenuidade e o discurso de grandeza de Tatum destruam sua fiel e correta atitude, ajudando-o nos serviços gerais e servindo como exemplo de que uma pessoa, com todas as qualidades exemplares que possa vir a ter, pode ser facilmente manchada e manipulada de acordo com o meio em que está envolvida.

É mais do que óbvio que tudo não irá acabar bem, principalmente quando as coisas começam a dar errado. Se Wilder tem coragem de nos brindar com uma situação e fim realistas, cabe a nós pensar naquilo que foi dito. Sempre haverá alguém para fazer o serviço sujo; a prova está aí, basta folhear os jornais ou visitar os sites de notícia a cada dia. Da mesma maneira que ainda há homens que lutam pela imparcialidade e transparência da essência da notícia (o editor que deu mais uma chance a Tatum antes de ter a bunda chutada, honesto e verificador de fontes, é um exemplo de jornalistas sérios), a grande maioria parece mesmo ir pelo caminho da polêmica, afinal, traz fama e sucesso em graus exponenciais em espaços quase inexistentes de tempo.

Na época de seu lançamento, a imprensa marrom sentiu-se profundamente atacada pelo visionário quase profético Wilder, e o público ofendeu-se por ter entendido que foi tratado de maneira estereotipada e ilógica. Mas, sejamos sinceros: quando há um acidente ou algum evento que saia um pouco da normalidade cotidiana, mesmo que não interesse a ninguém além dos envolvidos, instantes depois já estão lá curiosos para dar atenção a algo que talvez nem mereça tanto assim. E, obviamente, os jornalistas para aumentar, inventar e mentir para seus incontáveis leitores não pensantes. Então pensemos: será que Wilder era tão exagerado assim?

A Montanha dos Sete Abutres é um retrato de como o meio jornalístico transforma simples notícias em espetáculos da vida real. É só pensar: se o objetivo de um jornal é informar, por que existem tantos? Porque é necessário que cada um dê o seu show particular, que consigam comprar leitores das mais diferentes maneiras? Editores devem procurar aqueles que melhor contem suas histórias, aqueles que melhor têm faro de achar algo de errado acontecendo. Mais do que informar, jornal é uma maneira de entreter. Por isso há poderosos, aqueles que conseguem extrair dos fatos a ficção que desejam e, assim, manter o público do circo entretido – ou você acha que Wilder escolheu instalar uma lona e todo um espetáculo durante a escavação à toa?

Obra-prima pouco comentada fora do meio jornalístico, mas que deve ser obrigatoriamente revisitada por todos que gostam de um cinema que vai muito além de denúncia, mas de retrato da vida, este A Montanha dos Sete Abutres é um dos grandes clássicos esquecidos que merece ser redescoberto pelo grande público.

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