Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Superior à média, ainda que derrape em soluções às vezes óbvias.

6,5

O cinema de terror e suspense sempre utilizou crianças como tema central de suas histórias. Desde A Tara Maldita, com Shirley Temple, passando pelos seminais O Exorcista e A Profecia e chegando até O Anjo Malvado, cineastas de diversas épocas e nacionalidades se aproveitaram da aparência frágil e da suposta inocência dos pequenos para criar momentos de medo e calafrio. Poucas coisas são tão perturbadoras quanto ver uma criança cometendo atos de pura maldade. E é exatamente este o ponto de partida do diretor Jaume Collet-Serra em A Órfã, um filme com alguns problemas, mas ainda assim melhor que o esperado.

Escrito por David Johnson a partir de uma história de Alex Mace, A Órfã conta a história dos Coleman, um casal que, após perder a terceira filha no momento do parto, decide partir para a adoção. Em uma visita a um orfanato, os dois acabam se encantando com uma garota chamada Esther e decidem levá-la para casa. Aos poucos, porém, Kate (a mãe) começa a identificar sinais de algumas atitudes estranhas em sua nova filha e, à medida em que tenta investigar o passado da garota, as coisas vão se tornando cada vez mais perigosas para ela e para a família.

Ainda que inicie com uma cena capaz de causar certa repulsa, Jaume Collet-Serra (responsável pelo fraquíssimo A Casa de Cera) acerta ao optar primeiro pelo desenvolvimento dos personagens e das relações entre eles antes de começar no suspense propriamente dito. Os primeiros vinte ou trinta minutos da produção são utilizados para estabelecer eficientemente a dinâmica entre o casal Coleman e seus filhos, especialmente com a dificuldade de lidar com a perda do terceiro filho e o fato de estarem ou não preparados para a adoção. Claro que, tratando-se de um filme comercial com outros objetivos, o roteiro não chega a se aprofundar ou trazer complexidade às relações, mas, ainda assim, é extremamente eficaz ao criar uma identificação entre plateia e personagens.

Este é o primeiro sinal para o público de que A Órfã talvez possa oferecer algo a mais quando comparado à mediocridade atual do cinema de terror norte-americano. Collet-Serra ainda é habilidoso ao construir uma atmosfera eficaz de inquietação, de que nem tudo está tranquilo naquela casa, estabelecendo as bases necessárias para a construção da tensão quando Esther começa a demonstrar quem realmente é. Mesmo assim, ainda que acerte nesse sentido, o cineasta não consegue fugir ocasionalmente a irritantes clichês do gênero, como o marido surgindo quando se fecha o espelho – ironicamente, ele brinca com o mesmo recurso em uma cena na geladeira, quando tudo indica que alguém vai aparecer e nada acontece.

Até  então sustentado pela relação entre o casal, a história propriamente dita de A Órfã tem início assim que Esther aparece em cena. E, a partir daí, quem rouba o filme para si é Isabelle Furhman. Demonstrando uma grande versatilidade, Furhman se transforma no maior trunfo da produção, brilhando tanto nos momentos “normais” da personagem, quando cativa todos ao seu redor, quanto nas situações nas quais se torna um verdadeiro monstro, assumindo uma frieza de dar medo. Apenas olhando para a pequena atriz é possível perceber que há algo de doentio na natureza daquela criança, mesmo quando ela está apenas interagindo com seus pais.

Do outro lado, Vera Farmiga demonstra mais uma vez que é uma das atrizes em maior crescimento da atualidade, fazendo o contraponto perfeito à presença de Furhman em cena. Kate, sua personagem, recebe uma certa atenção do roteiro, ainda que o seu desenvolvimento seja realizado de forma esquemática, com o óbvio trauma do passado. Farmiga, porém, consegue fugir da caricatura e retratar, tanto física quanto emocionalmente, os efeitos do desespero sentido por Kate. É a partir dela, principalmente, que a plateia fica ao lado da família Coleman no restante do filme, o que é fundamental para gerar a tensão e fazer de Esther uma criatura tão repulsiva.

Aliás, é possível perceber que A Órfã realmente atinge seus objetivos quando a plateia se vê torcendo por Kate e sua família. Não fosse o filme bem-sucedido na apresentação dos personagens e na construção da narrativa, o espectador não se interessaria pelo destino da família – e é bem provável que até se posicionasse ao lado de Esther. Boa parte disso também se deve ao fato do roteiro tomar algumas atitudes corajosas no que diz respeito ao destino de alguns personagens, fazendo com que o ódio por Esther realmente exista – o que ela faz com as flores é tão ou mais cruel do que machucar fisicamente alguém da família Coleman.

No entanto, assim como ocorre com a direção, o filme inevitavelmente derrapa em soluções de roteiro mais do que batidas. Até quando os roteiristas obrigarão a plateia aguentar a história de ninguém acreditar no protagonista, mesmo quando todas as indicações estão a favor dele? Aqui, ela acontece mais uma vez: o marido e a psiquiatra simplesmente decidem crer que Esther é uma boa garota, sem ao menos ouvir os mais do que razoáveis argumentos de Kate. Da mesma forma, A Órfã apela para aqueles momentos típicos do gênero, como o corpo que some quando a polícia chega, apenas para reaparecer para atacar os protagonistas.

Se até o último ato A Órfã não passa de um suspense razoavelmente realizado, é a partir de uma reviravolta do roteiro em seu trecho final que se torna um filme realmente recomendável. Sem revelar pontos importantes da trama, basta dizer que este final pode desagradar alguns, mas é uma ideia interessantíssima, que joga outra luz sobre o filme, justificando algumas pontas soltas e abrindo espaço para novas interpretações sobre os personagens. Mais do que isso, sua execução é impecável, tanto em termos de atuação quanto no quesito técnico, especialmente no que diz respeito ao trabalho de maquiagem.

A Órfã, de certa forma, ecoa O Anjo Malvado, protagonizado por Macaulay Culkin em meados dos anos noventa. Aqui, no entanto, não obstante os lugares-comuns presentes na execução, o resultado é superior, devido às interpretações e a construção de uma boa atmosfera de suspense. Jaume Collet-Serra não consegue fazer o filme entrar na lista de grandes obras do gênero, mas é um esforço digno, que cumpre as suas intenções com mais propriedade do que a maioria do que é feito por aí. E isso já é mais do que até as mentes otimistas poderiam esperar.

Comentários (0)

Faça login para comentar.