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Críticas

Cineplayers

Um conto simpático sobre novas chances.

8,0

O inglês Ken Loach tem grande parte de sua filmografia construída sobre os pilares do engajamento político, não faltando em seu currículo exemplos que comprovam essa afirmativa, como Pão e Rosas (Bread and Roses, 2000) e Ventos da Liberdade (The wind that shakes the Barley, 2006). Nos últimos anos, porém, o realizador buscou apresentar sua temática predileta também sob um viés menos ostensivo, como faz em A Parte dos Anjos (The angel’s share, 2012), uma mescla bem dosada de reflexão social e comédia ligeira. O protagonista da trama é Robbie (Paul Brannigan), um rapaz delinquente morador de Glasgow, uma das maiores cidades escocesas. Recém-saído de um centro de reabilitação para jovens infratores depois de ter se envolvido em uma briga de bar, ele passa a ter como preocupação se reinserir socialmente.

Seu maior incentivo para acertar o passo é o filho que acabou de nascer, no qual vê também uma esperança de futuro mais estável. O problema é convencer os irmãos e o pai da garota com quem teve o filho de que essa é mesmo a sua decisão. Mesmo porque, a vida pregressa do rapaz não dá margem suficiente para que ele mereça crédito, como o desenrolar da narrativa indica. Sendo assim, Robbie passa a encarar um campo de provas à sua frente e, ao mesmo tempo, contar com o nobre auxílio de Harry (John Henshaw), um inspetor cuja experiência acumulada a partir de casos como o dele não lhe roubou a sensibilidade. Surgem ainda parceiros divertidos nessa estrada rumo ao recomeço, um trio que compartilha com ele o desejo de acertar. E é justamente nos atos desses personagens coadjuvantes que Loach dá ares cômicos ao filme: não faltam momentos em que um ou mais deles se atrapalham e arrancam risos.

É notável o carinho com que o realizador aborda a caminhada de Robbie e seus amigos. Sem cair no sentimentalismo barato, ele deixa fluir a humanidade que existe em cada um e permite que suas histórias e atitudes sejam compreendidas, ainda que não se possa concordar inteiramente com elas. Acima de tudo, A Parte dos Anjos é um conto sobre a busca por uma nova chance, premissa recorrente em vários gêneros cinematográficos e ainda capaz de render ótimos filmes, como é o caso deste aqui. Entre uma e outra sequência divertida, Loach dá o seu recado e faz crer que o espírito cooperativo é um eficiente antídoto contra o chamado “capitalismo selvagem”. Esse equilíbrio entre um discurso esquerdista não extremado e o bom humor torna o longa um acerto em sua carreira, iniciada com o singelo Kes (idem, 1969), que também trazia um protagonista lidando com a agonia da busca de um lugar no mundo.

O bom andamento da história também é mérito do roteiro assinado por Paul Laverty, um habitual colaborador de Loach. Despreocupado no que se refere a seguir fielmente a cartilha da correção política, ele coloca nos lábios de Robbie e seus amigos frases divertidamente sarcásticas, boa parte delas destinadas ao menos inteligente do grupo, o rei dos comentários absurdos. A certa altura, Robbie percebe que tem um dom bastante útil: identificar o sabor e a qualidade de um whisky através de uma rápida experimentação. Cabe a ele utilizar esse talento a seu favor, o que não tarda a acontecer, sempre com a ajuda dos companheiros também interessados na chance de ganhar da vida o que ainda não tiveram. E isso se traduz em um plano arriscado que, dando certo, é a salvação da lavoura para todos.

A referência do título é à parte que evapora dos tonéis de bebidas alcoólicas, e constitui uma expressão popular na área da enologia. Faz lembrar o hábito brasileiro de derramar um pouco da cachaça antes de bebê-la e dizer que é “pro santo”. O plano de Robbie tem justamente a ver com essa tal parte e representa uma virada pouco ortodoxa em seu destino. Nesse sentido, pode-se questionar se os fins justificam os meios na história do personagem, cabendo ao público avaliar se ele realmente traçou um bom caminho segundo sua moral particular. A Parte dos Anjos recebeu o prêmio do júri no 65º Festival de Cannes, onde Loach é figurinha carimbada na mostra competitiva, tal qual os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, cineastas de O Garoto da Bicicleta (Le gamin au vélo, 2011), que pode ser visto como um primo de segundo grau de sua produção aparentemente despretensiosa estrelada por jovens tão malandros quanto cativantes.

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