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Críticas

Cineplayers

Édipo ressentido.

5,5

Existem dois tipos de mães no cinema: as italianas e as outras. Matronas, intrusivas, apaixonadas, voluptuosas, fogosas, sensuais, atraentes, desejáveis e sofredoras. Independentemente da característica comum entre elas, o fato é que las mammas retratadas pelos diretores nascidos na Velha Bota têm um quê de diferente. Exemplos não faltam: Anna Magnani, em Belíssima (Bellissima, 1951) e Mamma Roma (Idem, 1962); Sophia Loren, em Duas Mulheres (La Ciociara, 1960); Katina Paxinou, em Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i suoi Fratelli, 1960); Laura Antonelli, em O Inocente (L´Innocente, 1976), Monica Bellucci, em Malena (Idem, 2000), e por aí vai.  A mais nova integrante deste seleto grupo vem agora na carne (e que carne!) de Micaella Ramazzotti, a protagonista de A Primeira Coisa Bela (La Prima Cosa Bella, 2010), filme que, depois de ter conquistado três Davids di Donatello e de ser escolhido o representante da Itália na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (não figurou entre os finalistas), chega com um considerável atraso no circuito comercial brasileiro.

1971. Livorno. Pouco mais de 300 km de Roma. Todos os habitantes da cidade parecem ter comparecido no famoso concurso que, ano após ano, escolhe a mais bela mãe da região. As candidatas estão no palco aguardando o anúncio da vencedora. Quando Anna (Micaela Ramazzotti) se torna a campeã da noite, a plateia não contém os aplausos. Entre os presentes, está Mário (Sergio Albelli), o marido da nova miss. que alterna olhares de orgulho e de desconfiança, os primeiros dirigidos para sua formosa mulher, e os segundos, para os homens que se alongam demasiadamente ao cumprimentá-la pela vitória. Mario está acompanhado de seus dois filhos, Valéria (Aurora Frasca) e Bruno (Giacomo Burglassi, quando jovem). A garota entra no clima da festa, enquanto que o menino não consegue esconder uma certa vergonha pelo excesso de exposição da sua mãe. Naquela mesma noite, enciumado pelo avanço dos gaviões, Mario expulsa Anna e seus filhos de casa. Quarenta anos depois, Bruno (Valerio Mastrandea), já residente em Milão, será obrigado, bem a contragosto, a retornar à sua Terra Natal para rever não apenas sua mãe (Stefania Sandrelli, na fase idosa), cujo estado de saúde inspira cuidados, mas acertar as contas com o seu passado.

Apesar de tudo girar em torno da personagem da mãe, a narrativa assume o ponto de vista de Bruno. O concurso da mãe mais bonita de Livorno, a briga dos pais logo em seguida (observada pelo buraco da fechadura), o sexo escondido entre eles, o flerte da mãe com os colegas da escola: tudo é filtrado pelo seu olhar. O conflito de Bruno se torna claro logo nas primeiras sequências: ele é o Édipo em pessoa. Com os sentimentos confusos de um menino de 7 anos, ele não entende o motivo pelo qual seu amor pela mãe não é correspondido. Afinal, se ela retribui a atenção que lhe é reservada pelos outros homens, por que não faria o mesmo justamente com aquele que deveria ser seu preferido?

Bruno terá que conviver com esse dilema ao longo da vida. Aos 17, já adolescente, ele percebe os inúmeros e inexplicáveis favores que sua mãe recebe do seu empregador, nota que a presença dela no seu colégio nem sempre tem a intenção de acompanhar a evolução dos seus estudos. Bruno não consegue tolerar a fama que sua mãe adquiriu na cidade. Mesmo já mais amadurecido, no seu inconsciente ele ainda é perdidamente apaixonado por ela. Para fugir dessa encruzilhada, ele se muda para Milão. Poderia ser para qualquer outro lugar, desde que bem distante daquela rotina autodestruidora. Não é à toa que o Bruno na idade adulta se transformou em um homem triste, desolado, solitário, incapaz de manter relacionamentos duradouros com outras mulheres, e que encontra nas drogas a única escapatória para uma vida pra lá de miserável.

A Primeira Coisa Bela é o 13º filme do diretor Paolo Virzi e, se a memória não me trai, o primeiro dele a ser lançado no circuito comercial brasileiro. Seu estilo de filmagem é discreto, sem grandes lances de câmera. Sua preocupação maior é com a história e com os personagens. Virzi pontua as duas épocas pela fotografia. O ano de 1971 é filmado em tons amarelados, quase sépia, evocando uma nostalgia dos tempos passados. À medida que o tempo vai passando, em especial nas sequências de Milão, já em 2010, a tonalidade vai se alternando para o cinza azulado sem vida, o que também é coerente com o momento de vida de Bruno. O artifício, apesar de óbvio, até que funciona.

Justamente por essa vontade de enxergar o passado com olhos saudosistas, quem sabe até fantasiando algumas passagens aqui e ali, conforme o próprio imaginário, o filme foi comparado com Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988) por muitos críticos estrangeiros. O paralelo não se justifica. Mais que a obra de Giuseppe Tornatore, A Primeira Coisa Bela me fez lembrar do cinema de Gabrielle Muccino.

Como não poderia deixar de ser, A Primeira Coisa Bela tem seus problemas. O principal deles é  mal desenvolvimento de Anna como personagem central. Quando jovem, pouco sabemos sobre seu passado, como ela conheceu seu marido Mario, o que ela faz da vida etc. Pelo pouco que o filme nos revela, é possível perceber sua ingenuidade em relação aos homens, sua falta de malícia, sua dificuldade de decorar um simples diálogo para um papel de figurante no novo trabalho de Dino Risi. Sem essa figura de carne e osso, o público acaba nem se importando muito com as desventuras de Anna pela vida, o que enfraquece sobremaneira o resultado final.

Além disso, é difícil aceitar que a Anna jovem é a mesma pessoa quando já idosa. Não me refiro às diferenças físicas entre as atrizes (e olha que Micaela Ramazotti e Stefania Sandrelli não têm nenhuma semelhança entre si). A distância entre elas está na caracterização das respectivas personalidades. A Anna que vemos em 1971 e 1981 é insegura, indecisa e avoada. A Anna de 2010 é esperta, vívida e sagaz. A segunda Anna, mesmo tendo 30 anos a mais nas costas e sérios problemas de saúde, parece ter muito mais energia e gosto pela vida que a primeira. A diferença entre ambas é tanta que, ao menos para mim, as atrizes pareciam estar interpretando dois personagens diversos.

Por fim, A Primeira Coisa Bela avança um pouco demais na metragem. Seu recado poderia ser muito bem dado com uns 15 ou 20 minuto a menos. Para tanto, a montagem final poderia ter reduzido boa parte dos longos flashbacks (que, inclusive, prejudicam a fluência da narrativa no tempo presente) e toda a passagem de 1981, que além de pouco acrescentar àquilo que já sabíamos dos personagens, poderia ter sido antecipada (de forma reduzida) para o período de 1971.

A Primeira Coisa Bela está longe de ser um fracasso completo. Há alguns momentos de bom cinema, como a sequência do concurso logo no início, e os bastidores da filmagem de A Mulher do Padre (La Moglie del Patre, 1971), de Dino Risi. Estes achados, no entanto, são insuficientes para salvar o filme como um todo. O resultado morno do final, deixa a sensação de que a obra tinha potencial para ir muito mais longe.

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