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Críticas

Cineplayers

O homem em meio à guerra.

8,5

Dez anos separam A Primeira Vitória de A Corte Marcial de Billy Mitchell (The Court-Martial of Billy Mitchell, 1955), do qual é a continuação lógica em certo sentido. Nos anos 60, com Exodus (idem, 1960), Tempestade Sobre Washington (Advise & Consent, 1962), O Cardeal (The Cardinal, 1963) e este A Primeira Vitória, Otto Preminger vinha desenvolvendo uma série de filmes-painéis que formam um afresco da primeira metade do século XX, "aos dramas e às epopéias do mundo contemporâneo” (como definiria o crítico francês Jacques Lourcelles), geralmente em torno do choque de indivíduos em meio às instituições, aos sistemas e corporações políticas, religiosas ou militares.

A Corte Marcial de Billy Mitchell já antecipava muito desses filmes posteriores, colocando-se no centro de um conflito dentro das próprias Forças Armadas em torno do personagem-título que, ao lutar pela formação da Aeronáutica americana, era condenado por insubordinação ao prever o ataque japonês a Pearl Harbor vinte anos antes dele acontecer. Pois bem, A Primeira Vitória começa justamente na noite que antecede o ataque à base militar, o que sugere uma coerência bastante particular na obra do seu diretor. Não é preciso conhecer A Corte Marcial de Billy Mitchell para ver ou apreciar A Primeira Vitória (ou vice-versa), e talvez o próprio Preminger nunca tenha feito qualquer associação entre ambos, mas em minha cabeça um já não vive sem o outro. São os dois filmes de guerra de Preminger, ou melhor, sobre uma conjugação entre esferas públicas e sentimentos privados e seus desdobramentos em meio aos acontecimentos e questões derivadas a partir do assunto em si (a guerra).

Já na abertura de A Primeira Vitória podemos perceber outra das preocupações do cineasta: as do campo formal, com a perfeição dos movimentos de câmera, que acompanham a movimentação dos atores pelo espaço cênico, sobretudo no plano-sequência que nos localiza com precisão numa festa à beira de uma piscina rodeada de gente na véspera do ataque japonês. Sua estética e fluidez são elegantes, uma câmera imediatamente sensível aos movimentos dos personagens e do espaço, mas sem excessos, completamente funcional. O auge da festa é uma dança extremamente sensual da esposa (a esta altura completamente bêbada) de um dos oficiais que naquele momento está no mar (o personagem de Kirk Douglas), e que sai da mansão com um outro oficial até a praia, onde se despem e fazem amor.

Quinze minutos depois, a ressaca da manhã seguinte, e o começo do bombardeio aéreo que varre aqueles vestígios de celebração. Dali em diante, A Primeira Vitória é sobre as consequências imediatas e sobre como os personagens (a maioria integrantes da marinha americana) reagem após o ataque, com todas as atenções aos detalhes em sua tentativa de compreensão de um universo tão particular, seguido por uma série de contra-ataques no Pacífico pelas forças navais americanas.

Mas Preminger pensa, antes de tudo, no quesito humano, e está interessado não na guerra, mas em lentamente conhecer os personagens, os lugares e as relações criadas, e em como os seus personagens se posicionam face aos eventos mostrados, seja nas situações mais brandas ou eventuais conflitos, sempre percebendo o que há de comum e distinto em todos os elementos implicados na sua construção, a partir do qual o sentido é construído, o mundo é refletido. Uma mesma ação pode ser interpretada de maneira diferente em tempos de paz e de guerra, um personagem explica ao outro no primeiro terço do filme, e a própria lógica dos eventos parece funcionar dessa maneira. Mas o cineasta tampouco está preocupado em exibir um conceito (ou uma mensagem) ou em ostentar um estilo. Preminger constrói uma série de situações em torno de um melodrama, no entanto as ações são destituídas de heroísmo ou sentimentalismo, sabendo o que mostrar e o que subentender.

A Primeira Vitória não é erigido como um filme histórico por excelência, grandioso (em suas qualidades e defeitos), ou nos moldes de um épico hollywoodiano (apesar dos seus 160 minutos), e uma das prováveis razões para que nunca tenha sido muito celebrado é a de que Preminger não permite que o drama se rompa em exageros ou na pieguice. Trata-se de uma superprodução que consegue se manter intimista não importa quantos extras estejam em cena ou mesmo com suas cenas de batalhas. “(...) o que importa, sobretudo, é a maneira de criar relações entre as pessoas para que elas possam tranquilamente se instalar em conjunto”, declarou o cineasta a respeito do seu oficio, e a sentença se aplica com perfeição sobre A Primeira Vitória. Mesmo a série de cenas do comandante da marinha interpretado por John Wayne com a personagem de Patrícia O’Neal (ou do comandante com o filho que nunca o aceitou muito bem) atinge uma temperatura emocional forte, mas realizada com notável discrição e respeito aos gestos e expressões corporais no registro das emoções dos atores, sem chantagens nem manipulações de qualquer espécie. A arte de Preminger é a da exatidão em saber colocar as coisas em seu devido tempo e lugar no plano, capaz de mover as peças de seu filme com cuidado para garantir o funcionamento delas.

No fundo, A Primeira Vitória é sobre o homem em meio à guerra, e não sobre vencer ou perder (de quantos filmes de guerra podemos dizer o mesmo na história do cinema?). Tampouco se trata de um dos tantos filmes que nos são vendidos como anti-belicista (que, no final das contas, não raro acabam servindo ao mesmo fim de uma fantasia imperialista qualquer: o de divertir ou manter o público em permanente tensão diante do assunto), seu interesse aqui é unicamente sobre as pessoas, sem que nenhum dos personagens guarde para si o ponto de vista do filme, mas com todos como parte de uma rede de relações na qual o trabalho de Preminger é estabelecer um espaço para os personagens com existências próprias que ultrapassa a mera função narrativa, e sempre explorando a amplitude que a imagem pode proporcionar e dar conta. Mesmo as sequências de batalhas, tecnicamente excelentes (e que nos prendem a atenção), se fazem presentes não para saciar a nossa vontade de uma catarse típica das provocadas num filme de guerra (as imagens quase abstratas de ondas e tempestades ao som de uma trilha nada triunfal nos créditos finais após a tal primeira vitória fazem com que, independente do resultado de uma guerra, o sentimento que resta após dela não seja o de glória, mas de uma profunda negatividade), mas como parte da proposta de um cinema que, como ao largo de toda a filmografia de Otto Preminger, se interessa antes de tudo pelo fator humano.

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