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Críticas

Cineplayers

Superficial, adaptação do romance de Anne Rice é um desastre cinematográfico.

3,0

Anos após o lançamento do cultuado Entrevista com o Vampiro de Neil Jordan, eis que o diretor Michael Rymer se decide a enfrentar a empreitada de realizar um novo longa baseado na obra de Anne Rice. Os roteiristas Scott Abbott e Michael Petroni, desta feita, se lançaram a adaptar o terceiro livro das Crônicas Vampirescas, A Rainha dos Condenados.

Diante da competência que Neil Jordan revelou ao construir seu filme, não era de se estranhar que o público esperasse de Rymer algo no mesmo nível de qualidade,  ou pelo menos não muito abaixo. Frustração geral foi o que Rymer conseguiu provocar.

Embora não seja o caso de se comparar livro e filme, duas linguagens artísticas completamente diferentes, também não se pode ignorar que A Rainha dos Condenados (filme) é a adaptação cinematográfica de uma obra literária. Se é uma adaptação bem feita ou mal, não é mera questão de gosto e sim, também, de coerência e de competência técnica (e olhe que é bem possível gostar de algo ruim). Em última instância se trata de avaliar o que o filme é e o potencial não aproveitado, ou seja o que o filme poderia ter sido. 

A Rainha dos Condenados é o livro mais revelador das Crônicas, aquele que esclarece a origem dos vampiros em tempos pré-históricos (conforme o universo elaborado pela autora), que explicita as posturas dos personagens diante da sociedade contemporânea, que os insere no mundo do nosso tempo, tal qual o conhecemos. O texto desenrola um emaranhado de tramas paralelas vividas por tipos muito bem caracterizados e, em sua maioria, envoltos em dramas existenciais profundos. Há muitas emoções conflitantes na obra literária que, no entanto, não chega a ser tão densa quanto os livros anteriores (Entrevista com o Vampiro e O Vampiro Lestat). 

De qualquer forma, Abbott e Petroni tinham diante de si a responsabilidade de adaptar uma obra extremamente complexa e também longa (cerca de 600 páginas só no referido volume) e apresentaram um resultado muito ruim, que terminou por comprometer toda a produção.  Em seu texto, Rice oferece uma variedade enorme de perspectivas e pontos de vista, em outras palavras, material bruto a ser lapidado por roteiristas, como, por exemplo, a riqueza cultural das civilizações; a relação entre Armand e o repórter de Entrevista com o Vampiro, Daniel Malloy; a relação de Maharet com sua família humana; a renovada relação de Louis e Lestat. 

A opção dos roteirista foi a de praticamente ignorar tramas paralelas e centrar o foco na caprichosa Akasha (Aaliyah), a rainha egípcia que se tornou a mãe de todos os vampiros. Dela depende a vida de todos os seus filhos e, após permanecer inerte por séculos, ela retorna à vida e decide que Lestat, o então astro do rock, deve ser o seu rei. Não foi exatamente uma opção errada a feita por Abbott e Petroni, o problema é que a história ficou superficial e cheia de falhas, inclusive quanto ao desenvolvimento da própria personagem Akasha.  

Assim, personagens extraordinários foram reduzidos a participações mínimas que, por vezes, chegam a ser ridículas, como é o caso de Marius (Vincent Perez desperdiçado) e de Maharet (Lena Olin), principalmente. Pouco ou nada se vislumbra da importância de Marius na trajetória de Lestat (Stuart Towsend)  e Armand (Matthew Newton), da dignidade de Maharet como a líder dos vampiros, da importância de David Talbot (Paul McGann) e de sua ascendência sobre a Talamasca (a associação voltada para estudos sobrenaturais). Sem falar na situação a que ficaram reduzidos aqueles personagens que aparecem quase mudos e desaparecem calados. Qual seria a importância dos “insubstituíveis” Jessica Reeves (Marguerite Moreau), Mael (Christian Manon), Pandora (Claudia Black) e Khayman (Bruce Spence) para a trama filmada por Rymer? Repito: não se trata de comparar filme e livro, mas sim de considerar o potencial não aproveitado. 

A exuberância física, uma das principais característica dos vampiros de Rice, é substituída por caracterizações quase caricatas, exageradas, esteticamente de mau gosto. A personalidade de Lestat, tão brilhantemente encenada por Tom Cruise em Entrevista com o Vampiro, na pele de Stuart Townsend ficou reduzida  a uma teatralidade forçada e vazia, cheia de caras e bocas. Nem de longe lembra o filho de senhor feudal, de modos franceses e personalidade irriquieta idealizado por Rice. Ou seja, o desenvolvimento de personagens chega a ser medonho (no mau sentido, mesmo) de tão inábil.

Mesmo quanto ao enfoque musical o filme perdeu boas oportunidades, pois o tempo histórico em que Lestat acorda e cria sua banda corresponde ao surgimento do movimento Thrash Metal, que nasceu na Baía da Califórnia (Bay Area) e se espalhou para o resto do mundo, chegando a influenciar o surgimento do Black Metal e gerando bandas como Megadeath e Metallica, Exodus, Venon, Slayers e tantas outras. Fato este solenemente ignorado, o que denuncia falta de pesquisa histórica.  

Só mesmo a falta de bom senso ou talvez a ganância pode gerar um filme superficial como este, como adaptação de obra literária tão significativa e cultuada por uma legião imensa de admiradores. Anne Rice, que de boba não tem nada, apressou-se a declarar, ainda durante as filmagens, não ter relação nenhuma com o projeto. No fim das contas, o filme de Rymer reduziu-se à condição de entretenimento que serve para ocupar o tempo, passando longe de entrar para o time das grandes obras cinematográficas que merecem ser reverenciadas.

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