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Críticas

Cineplayers

A condição humana, representada numa simples corrida.

10,0

Não bastasse ter um dos melhores nomes que um filme pode ter, que numa tradução literal (e correta) seria A Solidão do Corredor de Longa Distância, este notável clássico da Nova Onda Britânica (British New Wave) é um raro milagre do cinema: com muito pouco, na rusticidade visceral de uma pequena história aparentemente banal, alcança implacáveis verdades quanto à condição humana. É a vida em estado bruto.

Este memorável e belo recorte da realidade tem seu primeiro plano com a imagem de um jovem simplesmente denominado Smith (Tom Courtenay), um inglês típico, uma pessoa qualquer. Ele corre sozinho, em uma estrada deserta. Corre sem saber o motivo, corre sem saber para onde ir. Corre porque sabe que precisa correr. Mais adiante, no desenrolar da trama propriamente dita, Smith, que é enviado ao reformatório após um pequeno delito, é obrigado a participar de corridas entre os demais detidos. Nada mais emblemático.

Na corrida entre os homens, ninguém está preocupado com seu próprio desempenho. A corrida individual é a corrida do oponente. Os que estão atrás querem impedir que os que estão à frente continuem – seguram camisetas se for preciso; os que estão à frente só querem manter os demais em suas posições inferiores (a frase do filme é: “Keep back, Smith!”). Smith não é nenhum deles, não se enquadra no grupo. Faz, em meio à corrida dos homens, a sua corrida pessoal, aquela mesma do inicio do filme. Está fadado a viver para si: está fadado à vitória. Seu destino, em curto prazo, será a ruína perante os demais corredores. Mas sua verdadeira conquista estará bem adiante.

Logo na primeira disputa, Smith, que chega em  primeiro, sem a menor justificativa lógica, em seguida leva uma tremenda surra dos demais colegas de reformatório. A corrida em si era irrelevante: uma simples recreação para jovens delinquentes detidos. O dirigente, oportunista (afinal sempre há um aproveitador), prontamente vê alguma forma de tirar vantagem do talento natural de Smith, propondo sua participação em competições oficiais entre reformatórios.

O grande mérito de A Solidão de uma Corrida Sem Fim (The Loneliness of the Long Distance Runner, 1962) está no profundo significado que atinge sem dar grandes demonstrações de tal. É uma produção pequena, um filme curto, uma montagem enxuta, de enquadramentos simples, porém de grandes significados. Adaptação do conto de Alan Sillitoe, é um filme que se situa na vanguarda do cinema inglês dos anos sessenta, a chamada Nova Onda, a British New Wave, um equivalente da Nouvelle Vague na Inglaterra – numa época em que “novos cinemas” surgiam no mundo tudo. Todos os ingredientes do movimento estão lá: as ruas cinzentas e estreitas do subúrbio inglês, os jovens revoltados do pós guerra (angry young man), sedentos por vias de escape à vida ordinária, e o kitchen sink drama, herdado da dramaturgia do teatro, que é o drama doméstico, das relações familiares, denominado numa tradução literal de “drama de pia de cozinha”.

Conta com a direção de Tony Richardson, uma das figuras centrais da cultura britânica na virada dos anos 50 para os 60, e sua carreira é a própria trajetória deste momento do cinema inglês: veio das montagens do teatro moderno, foi um dos fundadores do Free Cinema, um novo estilo de cinema documental (o equivalente inglês do Cinema Verité cunhado por Jean Rouch na França, ou mesmo do Direct Cinema americano de D. A. Pennebaker), e foi, como diretores de tantas outras vanguardas, parar em Hollywood ganhando o Oscar (!) já no seu filme seguinte, na adaptação As Aventuras de Tom Jones (Tom Jones, 1963), estrelado por Albert Finney. O escritor Alan Sillitoe,  autor do conto que deu origem a este filme e, ele mesmo, autor do roteiro adaptado, é também o roteirista do filme que é a obra máxima do Nova Onda Britânica, Tudo Começou no Sábado (Saturday Night and Sunday Morning, 1960).

E o ator que personifica Smith, Tom Courtenay, lenda do teatro inglês, que viveu seu auge de popularidade no clássico Doutor Jivago (Doctor Zivago, 1965) como o insurgente russo Pasha, teve uma carreira onde sempre privilegiou os palcos ao invés das telas. Recentemente, após décadas com trabalhos esparsos, retornou ao cinema recentemente com o incentivo de Dustin Hoffman, em O Quarteto (Quartet, 2012), sendo dirigido pelo próprio.

Poucos filmes conseguem ser simples sem simplificar a realidade – talvez a característica mais nefasta que qualquer obra de arte (ou indivíduo) possa ter.
A linha é tênue, e tem resultados extremos. Uma das imagens mais fortes que o cinema pode produzir é a do rosto de um homem. Neste filme, em seu momento crucial, há imagem da face de Smith, parado, bem na linha de chegada. Há um semblante enigmático: a certeza de que sua vitória, em uma competição de oponentes, jamais significará uma conquista pessoal. Sua grande vitória é se colocar fora dela. Encontrar seu próprio caminho.

Comentários (8)

Diego Henrique Silveira Damaso | quarta-feira, 04 de Setembro de 2013 - 19:42

Uma ótima crítica, que me deu vontade de assistir o filme. Ele é realmente muito bom e me deu curiosidade para conhecer mais da British New Wave.

Patrick Corrêa | quinta-feira, 21 de Agosto de 2014 - 15:43

Belíssima crítica, tocou em vários pontos que também me chamaram a atenção.
O filme é mesmo uma grande metáfora pra vida através da corrida.

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