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Críticas

Cineplayers

Polanski e o delírio.

8,0
Parto da possibilidade de que a autoria existe e entro num impasse. Mas se faço o mesmo para a não-autoria, que aliás está implícita na sua positividade, escorrego em outro. Melhor se agarrar ao frutífero da incerteza – a alguns diretores pode ser, sim, cara, a noção de reciclar constantemente uma mesma linha de pensamento, temática, ou seja lá do que preferimos chamá-la. E ainda assim a ramificação se prolonga: é inconteste a aproximação de Polanski (performer e realizador) com o delírio, com a normalidade que vai sufocando a si mesma até virar ao avesso. Porque o ameaçador pode vir de fora em fisicalidade e presença, a despeito dos psicologismos virtuais da loucura a que certos personagens vão se entregando, mas é o ''ameaçante'' que o deixa entrar, em sua penosa fragilidade do sensível. E talvez seja bem isto: o que o Trelkovsky de O Inquilino (Le Locataire, 1976), a Farrow de O Bebê de Rosemary (Rosemary's baby, 1968) e a Deneuve de Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965) têm em comum é o teor exacerbado de sensibilidade e suscetibilidade, uma capacidade quase que inerente de responder com mais velocidade aos estímulos que só vem confirmar uma latência.

Para o Macbeth que Polanski filmou (a este verbo retornaremos em breve), na verdade, o caso é exatamente o de uma latência. A profecia, ou talvez todas as profecias, só vem sedimentar, contornar e impulsionar algo que já estava em gênese, ainda que adormecido. Macbeth não tem uma virada ao ouvir o que as bruxas têm a predizer; não macula a própria honra de herói e tampouco ''se abre'' para a corrupção de si: ela já estava lá. O que as três velhas pagãs provocam não é nada mais que o clarão, o afastamento das cortinas do destino para que o corruptível se pronuncie. ''Será rei, mas não terá sucessores''. E se se torna rei, não é para ser diferente daquele do início. A coroa só lhe serve de veículo. Até mesmo uma visão rasa da obra quase mítica pode se indagar se em qualquer estágio de sua própria maldição Macbeth não poderia ter interrompido a tragédia. Só que interromper por que meios? Era preciso testar o delírio enquanto ele mesmo estava em vias de se solidificar.

Entra, então, uma externalidade à loucura: o que Polanski poderia ter sobreposto à peça de Shakespeare? O que poderia adicionar tanto como sujeito quanto através do cinema? O que há na mise-en-scène cinematográfica que a do teatro não compreende? Decerto Macbeth já foi encenado centenas de vezes. De adaptações podemos contar quatro, anteriores ou posteriores a esta, e com a sorte de não se somarem aquelas mais soltas; cabe aqui procurar certa individualidade de autoria – é um filme, ponto, e é um filme de Polanski (e de toda a sua equipe). Curioso como os elementos de uma marca de realizador manejam uma convergência com aquilo em que o teatro é superado, ou ao menos multiplicado. Não haveria delírio intenso o suficiente não fossem as vozes (elas vêm mesmo da cabeça?) do pensamento de Macbeth e sua esposa, essas entidades que atravessam e se entrecruzam com as falas materializadas pelo corpo. Este que por sua vez já reagia à conturbação esquizofrênica da coisa que está se tornando e luta com todos os seus outros estilhaços. Não à toa o rei e sua lady estão sempre fragmentados, atormentados.

O primeiro signo manifesto da loucura da esposa é o sangue que está e não está nas mãos. O estado febril garante que a ausência das manchas e do vermelho implique a presença do que já esteve e se incrustou como síntese do assassínio. É que Polanski joga com fantasmas, e estes só coexistem quando a trucagem do cinema veicula a espiral das visões proféticas. Sobreposições, cortes, closes, sons on e offscreen, o movimento enlouquecedor dos espelhos com as faces dos futuros reis, filhos de Banquo, a coroa caída como símbolo dos dois reinados decadentes (porque o de Macbeth já se inicia pela maldição), o caldeirão que exibe o único homem não-nascido do ventre de uma mulher. ''Que as estrelas não vejam meus desejos negros e profundos'', dirá Macbeth num instante, sem saber que nós, partilhadores da imagem dele e de todas as outras coisas, tomamos o papel das luminosas.

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