Saltar para o conteúdo

Críticas

Usuários

Viver não é preciso.

0,0

ATENÇÃO: O TEXTO ABAIXO COMENTA PASSAGENS
IMPORTANTES DA TRAMA, OS FAMOSOS SPOILERS, ENTÃO LEIA
POR SUA CONTA EM RISCO!

-----

A Um Passo da Eternidade (From Here to Eternity, 1953), a bastante conhecida adaptação ao texto de James Jones dirigida por Fred Zinnemann, é, em alguns aspectos, semelhante a filmes como Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), de Stanley Kubrick – onde o diretor, mais que evocar a Guerra Fria, concebe, principalmente por meio dos mais sagazes diálogos, um dos maiores exemplares de humor negro da história cinema; ou seja, não assistimos apenas a um longa cuja “missão” maior seria enviar-nos ao período de tensão entre EUA e URSS, pois, mais que isso, mergulhamos de cara em um grande exercício de manipulação genérica pelo viés de uma black comedy genial. Não dá para classificá-lo, por conseguinte, como um “filme de guerra” – pelo menos não tão somente.

O caso de Zinnemann oferece ainda menos resistência, uma vez que todas as suas personagens estão sitiadas numa base do Havaí durante a 2ª Guerra Mundial, fato que nos torna alheios a tudo que acontece fora do lugar. É lá onde vemos a ação das forças circunstanciais agindo diretamente na vida daquelas pessoas, onde a guerra (armada), mesmo proporcionando diretamente tudo a que assistimos, por vezes é esquecida. Trata-se, portanto, de um filme sobre o homem (acima de qualquer pano de fundo), que condiciona seus elementos a um meio e período específicos, claro, mas que jamais deixa de ser guiado por uma essência ao mesmo tempo tão universal quanto atemporal.

Começamos o trajeto com a chegada de Robert E. Lee Prewitt (Montgomery Clift) à Cia. “G” da Base Militar de Schofield. Depois de reencontrar um grande amigo, Angelo Maggio (Frank Sinatra),  o rapaz, que havia sido rebaixado de cabo a soldado e, de acordo com suas próprias palavras, transferido para aquele lugar por motivos pessoais, se apresenta ao Capitão Dana Holmes (Philip Ober), que, por saber o quão desenvolto o seu subordinado é no boxe, o quer no grupo de lutadores. Prewitt, então, diz que não compete mais e por isso não pode atender aos pedidos de seu superior. Conhecemos aqui também o 1° Sargento Milton Warden (Burt Lancaster), que irá ficar ao lado de Prewitt quando este começar a ser perseguido por Holmes e outros membros do time de boxeadores e que manterá um caso com Karen (Deborah Kerr), a esposa do último. O que vai se desenhando na nossa frente enquanto nos vendemos ao filme de Zinnemann é um estudo de personalidades, uma exposição de valores e hierarquias que se erguem diante de uma guerra que clausura homens e mulheres em um espaço onde se respira ares militares e no qual dois malfadados casos de amor se desenvolvem: o de Prewitt com Alma “Lorene” Burke (Donna Reed) e do de Warden com Karen Holmes. São os percalços que surgem no caminho dessas pessoas que criam uma guerra interna fundamentada nos inevitáveis laços pessoais e profissionais que ali se estabelecem.

Um dos momentos mais significativos dessa exibição de quase duas horas é aquele em que Maggio, já um bocado embriagado, acaba arranjando encrenca com o Sargento James R. “Fatso” Judson (Ernest Borgnine), um grandalhão que estava ao piano durante uma noitada de um clube frequentado por militares que buscam beber e conseguir companhias femininas. Nessa cena, enquanto Prewitt está tendo seus primeiros contatos com Lorene, a personagem de Sinatra diz que não suporta mais ouvir tanto barulho e exige que Fatso pare de tocar. Indignado, este se levanta e começa a tratar a origem italiana de Maggio de maneira depreciativa. É extremamente suntuosa a visão que temos do busto imponente do sargento quando ele se ergue tomado pela injúria causada pelo franzino e valente soldado; trata-se de um ângulo devidamente calculado, que reflete não apenas superioridade física, mas também de patente. Eis uma composição que, além de representar a força da hierarquização no exército, pode sugerir a “onipotência” e/ou o ufanismo dos Estados Unidos da América perante o Eixo – restringido aqui à figura do “italianinho” invocado –, sem que para isso seja necessário nos transportar a um campo de batalha ou de alguma outra forma tratar da guerra mais diretamente.

Pouco tempo depois, assistimos àquela que é a cena mais famosa de A um passo da eternidade e uma das mais famosas do cinema: a cena da praia protagonizada por Lancaster e Kerr. Durante alguns minutos, o som do mar, a música que vai e volta e alguns planos rigorosos concentram simbolicamente muitos dos principais elementos da história. Aqui presenciamos o momento que sumariza todo o filme e que estabelece de vez o poder de concepção audiovisual de Zinnemann. Molhados e deitados sobre a areia, Warden e Karen amam-se até o momento em que iniciam uma discussão delicada sobre a vida amorosa desta. Warden quer saber sobre os homens com quem a loura já manteve relações extraconjugais, sendo capaz até de citar o nome de um deles. Nesse exato momento, a música cessa e passamos a ouvir somente o barulho orgástico das ondas que regam o momento de rusga entre o casal. Impedida de ir embora por Warren, Karen ajoelha-se diante dele – como que rendida diante da força masculina estabelecida à sua frente – e começa a relatar detalhes de seu casamento com Holmes. Ela conta que era traída e que por culpa do marido acabou perdendo o filho que esperava e, ainda por cima, ficou impossibilitada de engravidar novamente.  A expressividade do olhar de Karen, que se projeta para onde Warden está erguido (já fraquejando devido às duras confissões que saem dos lábios da amada), é das coisas mais bonitas que o diretor nos oferece. Por fim, o homem desce do “degrau” mais alto, ajoelha-se ao lado da mulher e estabelece de vez a relação de afeto, respeito e igualdade que, até então, jamais havia sido experimentada por ela. Com a música já ecoando novamente, um último estrondo d’água epiloga esse instante e dá-lhe a força de uma pequena obra-prima.

Apreciamos nessa cena, por conseguinte, a articulação de tudo que faz parte do universo filmado: o amor em conflito, as dores do passado que deixaram estigmas profundos, a noção de vida e morte – tão bem representada pela água do mar – etc. Observamos também que há um paralelo entre as vidas de Warden e Karen e as de Prewitt e Lorena – mulher que busca estabilidade na vida e que coloca este anseio como obstáculo ao amor que nutre pelo soldado interpretado por Clift. Há aqui, portanto, um percurso narrativo focado em dois eixos, em duas retas que se cruzam: em um lado, vemos uma mulher que padece devido às intempéries de um casamento com um homem de status e que busca em um amante uma fuga; no outro, encontramos uma alma que igualmente vaga à procura de uma vida segura ao lado de alguém de boa posição e da dignidade que não teve até agora. O que é particularmente importante é perceber que quanto mais a vida no exército se confirma como uma mazela para os casais, mais ela se torna necessária. No que diz respeito a Warden, a chance que ele tem de conseguir ficar com Karen depende da conquista da mesma posição (que ele detesta) de Holmes; Prewitt, um simples soldado, para poder condicionar o tão sonhado bem estar a Lorene, também deve tentar alcançar patentes maiores. É um beco sem saída.

Logo, contemplamos o casamento – como a própria Karen diria ao amante – dos homens com o exército, e com aquilo a que estavam predestinados desde o momento em que vestiram suas fardas. E isso tudo fica demasiadamente claro durante os minutos finais, nos quais assistimos ao ataque dos japoneses e à resistência habilmente comandada por Warden, um verdadeiro líder que – principalmente em aspectos humanos – supera Holmes, e ao heroísmo inconsequente do teimoso Prewitt, que, depois de assassinar Judson por causa da morte de Maggio, decide sair do esconderijo e retornar – sem vestes militares e machucado – à base durante a investida inimiga para lá ser alvejado por um companheiro de infantaria como um simples invasor. Estes últimos acontecimentos mudam significativamente o rumo das vidas das principais personagens e selam de vez o destino dos dois herois. Não é à toa que Warden (movido pela obrigação da conjuntura, obviamente), como jamais fizera, toma para si todas as responsabilidades de um líder máximo, passando até mesmo sobre as regras durante aqueles instantes de combate, e que Prewitt, um reles soldado (como ele mesmo declarou em um de seus diálogos com Lorene), morre sem as honras de uma batalha. As personagens a que Lancaster e Clift deram vida, dolorosa e ironicamente, cumprem seus legítimos papeis ao irem encontrar aquilo que sempre souberam que era impossível evitar.

Portanto, nada foge ao “escrito”, uma vez que Warden, com o arrojo de um grande homem, experimenta, quando é mais que necessário, o auge de seu senso de liderança, enquanto Prewitt, não menos valente, traça um caminho complementar, porém oposto, ao morrer sem mesmo estar uniformizado. Mas no fim, ambos, mesmo não vencendo a força das circunstâncias, conquistam uma batalha ainda maior, à qual será delegada apenas uma recompensa: a eternidade do título.

Comentários (2)

Heitor Romero | sexta-feira, 02 de Março de 2012 - 10:03

filmaço. Deborah Kerr e Burt Lancaster em uma das cenas mais antológicas do cinema.

Faça login para comentar.