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Críticas

Cineplayers

Em A Vida Após a Guerra, Solondz revisita seu próprio cinema de maneira artificial.

5,0

Assistir a A Vida Durante a Guerra é, antes e acima de qualquer coisa, assistir a um filme de Todd Solondz. Ou seja, a experiência filmica nos leva ao universo bem específico do diretor: o humor cruel e irônico; a bizarrice representada como cotidiana; uma mise en scène cheia de artificialidade. Em suma, estamos no Olímpio do realizador Deus que olha a seus personagens – mais marionetes do que reles mortais – com o mais puro desprezo. Nessa situação, cabe ao espectador escolher entre sentar nas nuvens e manter o olhar de superioridade ou rebelar-se contra esse Deus tão cruel.

O filme é a continuação do sucesso de Solondz: Felicidade (Happiness, 1998). Os personagens e a trama do primeiro filme são retomados plenamente, como em qualquer continuação, com apenas um detalhe diferencial: todos são representados por atores diferentes. O efeito poderia parecer estranho em outro filme, mas tratando-se do universo de Solondz não chega a surpreender, nem mesmo a provocar. De certa forma, dentro do jogo de poder absoluto e soberano que o diretor desempenha nada mais natural do que minar as forças dos personagens diluindo-os em corpos e representações descontínuas. Não identificação possível sem referencialidade. Não há potência sem um corpo.

De qualquer forma, não são apenas os atores que mudaram, o cinema de Solondz também está com outro corpo e outra representação. Felicidade relacionava-se diretamente com o imaginário de representação do subúrbio americano: das séries de televisão, ao mais que decadente american way of life, passando pelo próprio universo crítico do cinema independente norte-americano (do qual Solondz é  um expoente), tudo está presente ali. Se o olhar cruel e de desprezo também já estavam lá; pelo menos, antes, eles pareciam dirigir-se para além do próprio umbigo de imagens do diretor. A subversão, mais do que pelo tema polêmico da pedofilia e das perversões sexuais, vinha de uma representação que mantinha-se o tempo inteiro no limiar do imaginário televisivo e cinematográfico. Um esforço de manter o ar de inocência e pureza nas imagens (os tons pastéis e a luminosidade excessiva, por exemplo) e ao mesmo tempo lidar com temas pesados (como o estupro, o assassinato e a infelicidade). Em A Vida Durante a Guerra tal esforço não existe, o único referencial do diretor passa a ser o seu próprio cinema. Algo como a paródia da paródia da paródia: lá no fundo, a sociedade americana; um grau acima, a representação imagética dessa sociedade; outro grau além, a crítica dessa representação e, por fim, a releitura da crítica. Uma releitura que parece ter perdido do horizonte suas bases e tem como única referência o universo constituído pelo diretor.

Em A Vida Durante a Guerra, voltamos a encontrar as irmãs Joy, Trish e Helen e suas vidas que deveriam ser muito “normais” (a desfuncionalidade das famílias, como em grande parte do cinema independente americano, é a mina de ouro do diretor). Joy está passando por uma crise no casamento, seu marido tem uma estranha tara sexual ligada a fazer telefonemas eróticos anônimos. Ao mesmo tempo, Trish está finalmente começando um relacionamento sério – anos depois de seu ex-marido e pai de seus três filhos ser preso por pedofilia. Helen está cada vez mais afastada das irmãs e dos país, sendo a única bem sucedida na carreira e nos relacionamentos. Soma-se a isso: o ex-marido pedófilo que sai da cadeia e o filho do meio de Trish, Timmy, que está prestes a passar pelo seu bar mitzvah.

Se não deu para entender muito bem esse resumo da trama, ótimo! Esse era um dos objetivos, aparentemente. Afinal, como em todo filme independente que se preze, é importante que o diretor manifeste ostensivamente sua superioridade intelectual em relação ao seu público. E é essa pretensa profundidade intelectual que explica o grande debate do filme sobre o perdão e o esquecimento. É melhor esquecer ou perdoar? É possível perdoar sem esquecer? Ou esquecer sem perdoar? São algumas das questões levantadas pelo personagem de Timmy enquanto procura descobrir o que é se tornar um homem preparando-se para o rito de passagem do judaísmo. Para dizer que se falou da guerra, os questionamentos continuam: O que é se tornar um homem? Pedófilos são terroristas? E os terroristas, podem ser perdoados? (Depois dessa pergunta, retorne as questões acima sobre esquecimento e perdão e pronto: temos diálogos complexos e cíclicos).

Mas não, o roteiro que mistura a paranóia americana pós-11 de setembro com um livro de auto-ajuda ruim não é o maior problema do filme. A narrativa parece até bem pensada se comparada à forma como é encenada. A mise en scène é sempre forçada, acima do tom, patética. Como se a auto-importância do filme não conseguisse se expressar suficientemente por seus temas sérios e polêmicos e, então, fosse preciso injetar artificialidade na representação – para que nunca esquecemos de que estamos vendo um filme dirigido por Deus/Solondz. Assim, por melhores que sejam as atuações, nenhum dos personagens será mais do que uma mera marionete. Não há lugar para vida ou para o cinema, apenas para os efeitos de vida e de cinema.

Diante desse Deus tão cruel e ensimesmado por suas imagens cabe a pergunta: o cinema ainda precisa de divindades? De gênios do cinema independente? De autores? E o cinema de autor virou apenas esse termo triste de um conceito esvaziado? Para não perpetuar o clima de pessimismo e derrota que o filme propoga, acrescentamos uma terceira opção mais ecumênica as duas alternativas sugeridas no primeiro parágrafo, de cumplicidade no olhar ou rebelião: a devoção a outros deuses e outros cinemas.

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