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Críticas

Cineplayers

Apesar das boas intenções, o filme não soube dar o tratamento adequado a um tema tão delicado quanto o da passagem da adolescência para o mundo adulto.

4,0

Considere a seguinte lista de filmes: Laços Humanos, Os Brutos Também Amam, Verão de 42, Cria Cuervos, Conta Comigo, Minha Vida de Cachorro, E Sua Mãe Também, Aos Treze, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, A Culpa é do Fidel, Persépolis, C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor e Em Busca da Terra do Nunca.  Comparando obras de épocas, gêneros e nacionalidades tão diversas, seria no mínimo improvável que pudesse haver um traço comum entre elas. No entanto, analisando melhor, é possível perceber que, no limite, todos eles tratam rigorosamente do mesmo tema: o amadurecimento de um adolescente e sua entrada simbólica na fase adulta. É aquilo que os americanos rotulam de coming of age. A Vida Secreta das Abelhas se insere nesse tipo de subgênero cinematográfico. Infelizmente sem a mesma qualidade dos filmes lembrados anteriormente.

A narrativa começa com um rápido prólogo, ambientado dez anos antes da história principal. Escondida dentro do armário do quarto dos pais, a pequena Lily Owens observa sua mãe fazendo as malas. A mulher está com pressa e arruma as roupas de forma desorganizada. O marido entra em cena e a indaga sobre o que está fazendo. A briga entre os dois começa. A mulher tenta se defender. O homem não aceita sua partida. Uma arma surge em cena. O objeto cai ao chão, bem perto da garota. Assustada, a menina dispara a esmo. Sua mãe morre. A vida de Lily nunca mais será a mesma. A partir daí, ela estará condenada pela culpa de ter, aos 4 anos, assassinado a pessoa mais importante de sua vida e, mais que isso, pela eterna dúvida sobre o quanto sua mãe realmente a amava.

O tempo passa e estamos no ano de 1964, numa cidade da Carolina do Sul. Lily (Dakota Fanning) já é uma adolescente. Ela mora com o pai T. Ray Owens (Paul Bettany). A relação dos dois é fria. Prova disso que ela o chama apenas pelo nome. T. Ray tem uma plantação de pêssegos. De dia, trabalha na colheita. De noite, mata o tempo bebendo. T. Ray está longe de ser um pai amoroso. Não se lembra da data do aniversário da filha, a não ser que esta o avise na véspera. Diante de qualquer atitude errada da garota, ele não pensa duas vezes em aplicar os castigos mais severos. E, quando avisado que a menina precisa comprar um sutiã, sua principal preocupação é com o custo da nova peça de vestuário e não com o fato de ele não ter notado que sua filha já se tornara uma adolescente. Por sua vez, Lily é uma menina mais madura do que indicam seus 14 anos. Enquanto garotos da sua idade passam zunindo de carro, ela prefere escrever suas próprias histórias, e sonhando em um dia tornar-se uma escritora.

A melhor amiga de Lily é Rosaleen Daise (Jennifer Hudson), misto de babá e empregada doméstica. Rosaleen sente-se fortalecida pela notícia dada pelo presidente Lyndon Johnson, de que o Congresso Americano acaba de aprovar a lei dos direitos civis. Em tese, aquilo lhe garantia o direito de voto, algo até então impensável para os negros. Certo dia, ela e Lily resolvem ir à cidade. Rosaleen quer obter seu título de eleitor o mais rápido possível. No caminho, elas topam com alguns moradores locais. Eles não entendem como uma garota branca pode andar ao lado de uma negra. O conflito é inevitável. Rosaleen  é espancada e vai parar no hospital. Inconformada com a omissão do pai no episódio, Lily foge com Rosaleen. É o início de sua jornada em busca de maiores informações sobre a mãe.

O destino a leva a uma fazenda em que residem as irmãs Boatwright. São elas May (Sophie Okonedo), June (Alicia Keys) e August (Queen Latifah). May tem problemas mentais, que se potencializaram a partir da morte de April, sua irmã gêmea. June é professora de violoncelo. Seu passatempo preferido é separar-se e, tempos depois, reconciliar-se com o namorado (Nate Parker). August é a mais velha e sábia das três e que, por isso mesmo, assume o papel de mãe daquele pequeno clã. As irmãs Boatwright são famosas na região pela qualidade do mel que comercializam.

O êxito no tratamento de um tema tão delicado e universal como os conflitos da adolescência não depende de mirabolantes recursos cinematográficos. Antes disso, esses filmes pedem personagens bem construídos e situações verossímeis, capazes de provocar uma reação autêntica no público (seja uma lágrima ou uma gargalhada). Mas sobretudo, eles exigem a existência de conflito (afinal, essa é a característica básica de toda e qualquer adolescência). Somente assim o público vai realmente se interessar pelo protagonista cujo destino está sendo traçado diante dos nossos olhos naquele espaço de duas horas.

O roteiro, de autoria da também diretora Gina Prince-Bythewood e baseado num romance desconhecido no Brasil, mas de imenso sucesso editorial no EUA, se equivoca em vários aspectos: o excesso de metáforas, ora ingênuas (a comparação das abelhas com os humanos), ora inúteis (a opção de batizar sua protagonista e sua companheira de jornada com nomes de flores);  a falta de sutileza para criar situações genuinamente emocionais (há várias sequências criadas com o único propósito de fazer o público chorar); e o mau desenvolvimento de alguns personagens (como o do pai de Lily) bem como a criação de outros claramente desnecessários (o namorado de June). Com tantos problemas, não é de se estranhar o que o resultado final soe inflado e artificial.

A história de A Vida Secreta das Abelhas é ambientada no auge do conflito racial dos EUA e a luta dos negros pela aprovação da lei dos direitos civis (não é à toa que o filme foi produzido por Will Smith e sua esposa, Jada Pinkett Smith). No entanto, esse pano de fundo é pouco aproveitado pelo roteiro. Assim que Lily é acolhida pelas irmãs Boatwright, o filme se concentra apenas naquilo que ocorre dentro da fazenda. O espaço se transforma num espécie de porto seguro (uma extensão do útero materno?), que protege seus integrantes dos atritos sociais que ocorrem do lado de fora. A única referência a eles surge num único momento, quando a protagonista vai ao cinema acompanhada de Zach (Tristan Wilds), afilhado negro de August. E mesmo esse episódio é tratado de forma displicente e maniqueísta.

Aliás, maniqueísmo é outras das características presentes no roteiro de A Vida Secreta das Abelhas. Para a diretora Bythewood, não há meios termos: os brancos são retratados como pessoas broncas, alcoólatras, preconceituosas e pouco amorosas. É o caso de T. Jay, cuja falta de atenção com a filha (por maior que fosse sua mágoa em relação ao passado) extrapola os limites do bom senso. Já os negros, são cultos, sensíveis e sábios. O exemplo, aqui, vem de August, que transmite uma lição de vida a cada frase que pronuncia. Essa separação radical dos personagens entre dois extremos artificializa a maioria dos conflitos.

A Vida Secreta das Abelhas ressente-se também de uma protagonista pouco verossímil. Considerando os dramas por que passou na infância, Lily é uma adolescente por demais segura de si mesmo. Ela não carrega um sentimento de culpa por ter causado a morte acidental da mãe. Sua única preocupação é investigar se ela realmente a amava ou não. Além disso, crescida num ambiente sem a presença de qualquer figura feminina e diante de um pai tão seco, é espantosa sua serenidade para encarar os desafios que a vida lhe traz (ela está tão bem resolvida com seu passado, que é capaz, inclusive, de iniciar um pequeno flerte com Zach). O problema não está na atriz (Dakota Fanning é das artistas mirins mais confiáveis em atividade nos EUA). O equívoco é outro, mais relacionado à própria concepção da personagem.

O restante do elenco faz o possível para defender seus papéis. Paul Bettany recebe a árdua tarefa de fazer o velho tipo do "pai beberrão e insensível". Com todas as limitações que o roteiro lhe impõe (nunca se explica exatamente sua reação à morte da esposa), até que ele se sai bem. Queen Latifah já provou ser uma atriz versátil e que consegue transitar com igual desenvoltura tanto no drama quanto na comédia. Apesar de não estar mal no papel de August, ela se limita a pregar lições de sabedoria e, metaforicamente, representar a figura da abelha rainha daquela colméia de mulheres. Mais uma vez, o problema não está na atriz, mas sim na personagem. Sophie Okonedo sai um pouco do lugar comum, ao interpretar um papel com alguma potencialidade dramática, mas que não é integralmente aproveitado pelo roteiro. Alicia Keys já faz muito ao não comprometer. Por fim, Jennifer Hudson compõe sua Rosaleen com uma vivacidade e personalidade que nem mesmo o filme parece possuir. Infelizmente, a personagem é colocada para escanteio logo após o primeiro terço da projeção.

No resumo da ópera, A Vida Secreta das Abelhas é uma obra cinematográfica que funciona mais na teoria do que na prática. A premissa básica (a transformação de uma adolescente em mulher) era interessante  e, sim, rendia uma boa história. Contudo, a falta de uma narrativa mais ousada e o excesso de boas intenções prejudicaram sensivelmente o resultado final do projeto. E, como se sabe, de boas intenções, Hollywood está cheia.

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