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Críticas

Cineplayers

A carniça e a fome.

8,0

Abutres provoca o espectador, a começar por seu personagem central cuja índole questionável poderia comprometer qualquer empatia que poderíamos criar por ele. Mas isso não acontece. Há razões para que não aconteça. Escolhido para representar a Argentina no Oscar 2011, esse filme do ótimo Pablo Trapero exprime um penoso choque moral a partir da legislação do país. De composição fria, sobretudo na contextualização de seus ótimos personagens, vem tratar de uma polêmica sobre extorsão, utilizando acidentes automobilísticos para mergulhar num submundo envolvido com indenizações. Em sua particularidade, mais do que denunciar um fato, alça questionamentos em volta de um romance acidental, tal como todos os outros acidentes circundantes que os atraem.

Trapero é um diretor respeitado. Antes desse Abutres, ele já havia realizado importantes obras como Nascido e Criado (Nacido y Criado, 2006) e Leonera (Leonera, 2008). Aqui, como abutres a espreita, advogados se atentam para acidentes com vítimas em Buenos Aires e partem sobre eles com o intuito de auxiliá-los nas formas de lucrar com as ocorrências. Vale de tudo. Um desses homens é Sosa (vivido pelo sempre competente Ricardo Darín), advogado especialista em indenizações que transita por becos atrás de carcaças e cria planos que de alguma maneira possa render-lhe qualquer lucro. Sosa aparece ao lado de paramédicos em locais de acidentes, ofertando, juntamente a ajuda, oportunidades de compensação a tragédia. Êxitos nesse âmbito são recorrentes, ainda que lide com consequências.

Em um dos resgates, Sosa conhece Luján (Martina Gusman, esposa do diretor e que já havia trabalhado com o mesmo nos dois longas anteriormente citados), uma médica  cuja carga horária é opressiva. Ela divide seu tempo entre a ambulância, os leitos de hospitais e a cama de sua casa, onde deita durante poucas horas. Seu ofício é arrebatador – taí uma consideração baseada em situações análogas em vários locais do mundo – afunilando sua vida a um vazio que lhe pressiona insuportavelmente. A garota, diante a pressão submetida pela exigência do chefe e isolamento emocional – há um símbolo visual quando ela surge atrás das grades no hospital –, se esconde e se dopa como esquiva. As coisas alteram-se quando Luján aceita um convite de Sosa para tomar um café. Às 6h da manhã, com o céu levemente iluminado pelo sol nascente, protagonizam uma das cenas mais ternas do longa, contraposição à correria que o resto do dia – e as cenas que assistiremos – lhes acometerá.

Pablo Trapero nunca dá mais atenção do que a necessária aos feitos de seus personagens e elabora sempre através de planos longos o que se passa nessa singularidade solitária que os acompanha, fechando o plano somente ao denotar gestos íntimos que poucas vezes são postos em cena. Luján e Darín estão em completa sintonia. O papel do diretor de fotografia, Julián Apezteguia, é irrepreensível. A disposição dos locais de trabalho são asfixiantes e tristes (escritório de Sosa e corredor do hospital com baixa iluminação), influindo categoricamente na personalidade dos protagonistas. A ilustração de uma vida dedicada à máfia em tempos atuais, num país que perde mais de 8 mil pessoas anualmente em acidentes de trânsito, retrata a possibilidade de uma escolha por sucesso financeiro e pessoal.

Sosa não é vítima e o diretor nunca o inocenta. Luján também não. A composição de seus personagens a partir dos planos e do roteiro são viscerais para o diagnóstico de esgotamento que observamos sobre essas vidas: a explosão é eminente. As sequências que apresentam o cotidiano de ambos e a montagem que elucida os caminhos análogos de Sosa e Luján, ainda que desiguais, dão conta de estilizar com profundidade o que sentem. Isso colabora com nosso envolvimento e identificação, apesar das ações imorais de ambos. O peso penoso dessas vidas é melhor compreendido nas intimidades, quando uma espécie de ponto de equilíbrio, ou compensação, parece ter sido encontrado no outro. Aí parte de escolhas pessoais, ponto que o roteiro faz questão de acentuar. De trama atrativa e personagens amargos num cenário violento, altruísmo e caridade soam como aversões nesse drama de acidentes correntes eloquentes, componentes da tragédia alheia que beneficia outros: os famintos que sobrevoam a carniça.

Comentários (1)

Tiago Cavalheiro | quinta-feira, 30 de Abril de 2015 - 22:10

Filme de atmosfera densa, bem fotografado com personagens fortes. Darín muito bem como sempre, e Martina Gusman o que é essa mulher meu Deus, coisa linda do mundo. Trapero é um excelente diretor. Ótima critica Marcelo.

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