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Críticas

Cineplayers

A dor do luto filtrada pelo som do bluegrass.

7,0

Como lidar com a doença grave de um filho? O que fazer diante da perda daquele pequeno ser  que vimos nascer, que dormia no nosso colo, que cabia na palma da nossa mão, que ensinamos a engatinhar, a andar e a falar? Como continuar a viver sem aquele olhar espontâneo, o sorriso verdadeiro, os pulos na cama todos os dias logo ao amanhecer? Qual a sensação de esvaziar o quarto das nossas crianças, ainda repleto de brinquedos esparramados pelo chão e de pinturas e adesivos de princesas e super-heróis nas paredes e nas portas dos armários? Como deixar de ouvir o som das vozes finas que ainda ecoam pelo ambiente, dos pedidos para se contar uma história antes de dormir e do último desejo de boa-noite? Como superar o ato de enterrar os nosso filhos? Filmes como Gente Como a Gente (Ordnary People, 1980), O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio, 2001), A Última Ceia (Monster’s Ball, 2001), 21 Gramas (21 Grams, 2003), Uma Prova de Amor (My Sister’s Keeper, 2009), Anticristo (Antichrist, 2009), e Reencontrando a Felicidade (Rabit Hole, 2010), A Guerra Está Declarada (La Guerre est Déclarée, 2011), para ficar em alguns exemplos, tentaram responder a estas questões, cada qual a seu jeito, e na maioria dos casos com resultados bem satisfatórios. Outro título que se incorpora a este grupo, vem da Bélgica: Alabama Monroe.

O filme conta a história de Elise (Veerle Batens), uma tatuadora que faz do próprio corpo um mostruário do seu trabalho e um inventário dos seus antigos namorados, e Didier (Johan Heldenbergh), o vocalista de uma banda de bluegrass, um desdobramento da música country americana, que não acredita em Deus, e que mora isolado num trailer, ao lado de cavalos e galinhas. A narrativa começa com Didier ao lado de seus parceiros, se apresentando para uma plateia lotada de entusiasmados fãs (entre eles, uma figura importante que será revelada mais ao final da projeção). Logo em seguida, somos transportados para o interior de um hospital. A expressão de felicidade que Didier mostrava no palco não existe mais.  Ele e Elise acabaram de ser informados pelo médico que a bela Maybelle (Nell Cattrysse), a filha de 6 anos do casal, foi diagnosticada com leucemia. A partir daí, o roteiro passa a avançar e recuar no tempo, acompanhando, no presente, o tratamento da doença da garota e as inevitáveis consequências na vida dos pais, e, no passado, o início daquele romance, a criação da banda, a notícia da gravidez, o nascimento e os primeiros anos da criança.

Alabama Monroe se insere naquele rol de filmes que abordam dois dos temas mais delicados no cinema: a doença infantil e o luto. Se tratado com mão pesada, o material tende a se tornar excessivamente melodramático. Se ficar aquém da conta, o drama vivido pelos personagens não será capaz de ultrapassar os limites da tela e, consequentemente, afetar emocionalmente o público a que é dirigido. Felizmente, o diretor Felix Van Groeningen, com o auxilio do roteiro escrito em parceria com Carl Joos (por sua vez, baseado em peça de autoria do ator Heldenbergh), confere ao filme a dose certa de sensibilidade, o que faz com a emoção flua naturalmente das situações enfrentadas pelos personagens.

Muito contribui para esse equilíbrio o bom desenvolvimento e à química do casal formado por Elise e Didier. Eles formam o núcleo da obra. A construção de ambos é feita aos poucos, sem pressa, com as revelações do passado iluminando e dando outro significado às ações tomadas no presente e futuro. O público acredita e torce pelo sucesso daquele romance, se compadece com a provação pela qual são obrigados a passar, e de certa forma compreende as consequências que o evento trágico provoca na vida de cada um.

Didier é uma espécie de Kriss Kristofferson belga. Seu cabelo desarrumado exige um corte urgente. Seus dentes tortos e amarelados indicam que o fumo é um vício antigo. A barriga que já começa a aparecer, revela a meia-idade batendo à porta. No entanto, esse jeitão de brutamontes desaparece como um passe de mágica em dois momentos: quando ele está sobre o palco, ao lado dos seus companheiros de banda, cantando as baladas de bluegrass, e no seu olhar apaixonado para Elise e Maybelle. Didier é ateu confesso, não acredita em reencarnação e, cético, tem dificuldade para concordar com a filha, quando esta diz que o pássaro que acabara de morrer na sua varanda virara uma estrela no céu. Elise é aventureira, apaixonada pela vida e pelos homens (talvez um pouco demais), e que troca de relacionamentos como quem troca - literalmente - de tatuagem. Mas esse espírito guerreiro e indomável parece só fazer sentido se escorado na crença da existência de um ser maior, simbolizada na pequena corrente com um crucifixo que Elise herdou da sua mãe e que seria transmitida à sua filha.

O roteiro reforça as características que tornam Elise e Didier seres claramente opostos. No primeiro encontro de ambos, ele não faz questão de agradá-la e admite que é incapaz de fazer uma tatuagem em seu corpo, por mais relevante que fosse o fato ou a pessoa a ser marcada. Por sua vez, ela revela que não sabe distinguir a diferença entre um Elvis Presley e um Hank Williams, e que nunca ouviu falar em Bill Monroe. Mesmo assim, o amor floresce e não demora muito para que o casal se torne inseparável. A coisa melhora ainda mais, quando Elise demonstra um inesperado talento vocal e se incorpora à banda, fazendo da dupla uma espécie de Johnny Cash e June Carter europeu. A chegada de Maybelle é o coroamento daquela união.

Ah... Maybelle... 6 anos, linda, alegre, e com uma vida inteira pela frente. Tudo isso é interrompido pela descoberta da leucemia. As sessões de quimioterapia passam a ocupar o espaço que antes era preenchido pelas festinhas infantis com as coleguinhas do colégio e os espetáculos musicais dos pais. Os longos fios de cabelo já não existem mais. Cansaço e enjoos são uma constante. A estrutura em flashbacks que domina toda a primeira metade da narrativa, e que permite ao espectador contrastar os anos dourados de Maybelle com a rotina hospitalar, provoca um efeito ainda mais devastador no público. Não é possível que aquela graça de menina seja a mesma que, agora, sofra com vômitos e punções (duas das sequências mais chocantes são a primeira vez que a vemos com os fios de cabelo raspados pela metade, e o seu grito de dor quando uma agulha lhe extrai o líquido amniótico das sua medula óssea). Maybelle não se deixa abater, mantém o bom humor e luta pela vida como uma pequena (e maquiada) leoa.

Alabama Monroe consegue lidar com todos estes temas de forma serena, racional, sem pieguismos, exageros e dramalhões. A primeira conversa do médico com os pais a respeito da doença da menina, e que nas mãos de um diretor mais inseguro seria um prato cheio para a catarse cinematográfica, sequer é mostrado. Os vários colóquios musicais da banda de bluegrass que entrecortam a narrativa, aliviam a tensão (além de fazer a história avançar). E o evento chave, que marca um novo rumo na vida do casal, é rápido, repentino, real.

Se na primeira metade o filme equilibra bem o vai e vem narrativo e a mistura do romance do casal com a doença da filha, na segunda, infelizmente, a coisa sai um pouco do prumo. Sem qualquer motivo aparente, o roteiro passa a abordar o tema das células-tronco, cuja aprovação nos EUA acabara de ser vetada pelo então Presidente George Bush. É possível que haja uma pitada de ironia aí, já que o mesmo país adorado por Didier (segundo ele mesmo, a autêntica terra das oportunidades e dos sonhos), é também capaz de, por motivos estritamente religiosos e não científicos, impedir numa canetada o avanço de uma pesquisa médica tão importante para a humanidade. Se essa foi a intenção, surgem dois problemas: o primeiro está no tom do discurso, que deixa de ser a sincera lamentação de um pai devastado pela dor, e assume contornos panfletários, como se o diretor Groeningen estivesse emitindo a sua própria opinião através da boca do seu personagem. O segundo, até mesmo óbvio, é que a indignação de Didier não faz o menor sentido, pois eles a legislação da Bélgica (como é dito pelo médico e pela própria Elise), admite as pesquisas de célula-tronco. A introdução deste aspecto religioso à trama é feita de forma abrupta, não orgânica, sem respeitar o arco psicológico dos personagens, e compromete um pouco o resultado final.

O elenco, desconhecido para o público brasileiro, é excelente. Destaque para Veerle Batens, que equilibra o espírito aventureiro da primeira parte com a amargura da segunda. Ela está particularmente bem na sequência em que o ato sexual lhe proporciona sentimentos ambíguos de culpa e prazer. Merece menção também a menina Nell Cattrysse, no papel de Maybelle. Com seu olhar angelical e sorriso contagiante, ela segura a onda em um personagem difícil e chave no contexto da história.

A humanidade com que tratou um tema tão doloroso explica o reconhecimento do público e da crítica que o filme conquistou tanto na Bélgica quanto ao redor do mundo (inclusive com direito a uma indicação ao Oscar de Melhor Fita Estrangeira). Seco sem ser gelado, emocionante sem ser apelativo, e verdadeiro sem ser didático: Alabama Monroe pode não ser perfeito, mas o seu saldo - como cinema e lição de vida - é mais do que positivo.

Comentários (10)

Eliezer Lugarini | domingo, 02 de Fevereiro de 2014 - 19:27

Díficil gostar deste filme. A cena inicial até me interessou mas fui me decepcionando aos poucos ao longo da sessão. Belas músicas, grandes atuações ,mas os clichês recheiam o filme todo. Não vou negar que tem alguns pequenos bons momentos. Gostei da cena do pai explicando sobre as estrelas. Me parece aquele tipo de filme que emociona aquele público que assiste os filmes da globo de segunda feira ou de sessão da tarde.

Silvia Lima | segunda-feira, 10 de Fevereiro de 2014 - 01:42

Esse tipo de dor me apavora, não há blindagem que suporte. Acaba até ficando por demais pretensioso querer apontar algum defeito no filme, seria uma heresia. Esse tipo de tema me desarma completamente.
Bons atores, adorei a criança . Música boa para elevar a alma das rasteiras da vida.
Bom filme.

Silvia Lima | segunda-feira, 10 de Fevereiro de 2014 - 01:51

Na lista de filmes do gênero faltou mencionar Inverno Despedaçado de Greg Zglinski. Parece que este tema é bem recorrente nos filmes Belgas.

Daniel Oliveira | sábado, 15 de Março de 2014 - 17:58

Poucos filmes me tocaram esse ano como Alabama Monroe. Excelente.

Compartilho a crítica que escrevi em meu blog pessoal ;)
http://cinefilosantista.blogspot.com.br/2014/03/critica-alabama-monroe.html

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