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Críticas

Cineplayers

Apesar das falhas, é obrigatório para aqueles que estudam a história do cinema.

6,0

Caesar Enrico Bandello: Mother of Mercy! Is this the end of Rico?

Alma no Lodo é o tipo de filme que funciona mais numa sala de aula de um curso de cinema do que propriamente pelos seus méritos artísticos. Do ponto de vista acadêmico, a fita serve como importante ferramenta para se entender alguns momentos chaves do desenvolvimento do cinema, especialmente o americano: a passagem dos filmes mudos para os sonoros; o sistema de estúdio que vigorava nos EUA no início dos anos 30 (e que se encerrou no fim dos anos 40, com a Lei Anti-Truste e a chegada da televisão); a viabilização do projeto como veículo para determinados atores, entre outros fatores.

Por outro lado, do ponto de vista técnico, Alma no Lodo possui evidentes defeitos de construção narrativa, de desenvolvimento de personagens e de interpretação. É certo que tais problemas, analisados hoje, mais de 70 anos depois, são até compreensíveis. Afinal, naquela época, mesmo já sendo uma arte bastante evoluída em relação às suas origens, o cinema ainda vivia muito da experimentação dos profissionais envolvidos (especialmente, os produtores). Abstraindo a questão do tempo, no entanto, estas falhas comprometem a aura de clássico intocável que o filme ostenta nos dias de hoje.

A história é bastante conhecida: os imigrantes italianos Caesar Enrico Bandello (Edward G. Robinson) e seu amigo Joe Massara (Douglas Fairbanks Jr.) vivem de pequenos golpes em postos de gasolina. Suas refeições são realizadas em espeluncas de beira de estrada. Enrico é o mais ambicioso da dupla. Ao ler no jornal as manchetes sobre Pete Montana (Ralph Ince), o grande chefão da Máfia, sonha em igualar seus feitos. Seu companheiro, por outro lado, tem desejos menos escusos: ganhar dinheiro através da dança. Enrico o convence, então, a vir até a cidade grande (embora nunca citada, a referencia à Chicago é evidente). Ele logo se associa a Sam Vettori (Stanley Fields), um dos muitos representantes da máfia local. Ao mesmo tempo, Massara é contratado como parceiro de dança de Olga (Glenda Farrell), na boate Clube Palermo. Com o passar do tempo, Enrico, a esta altura já conhecido no meio simplesmente como Rico, demonstra sua força dentro da organização criminosa. Rapidamente adquire o respeito de seus integrantes e, naturalmente, assume o comando da gangue. A partir daí, acompanhamos a tomada do poder das demais associações mafiosas, sua relação conflituosa com o amigo Massara e a inevitável derrocada final.

Seria injusto não reconhecer em Alma no Lodo sua condição de um dos pilares do gênero dos filmes de gangsteres. Ao lado de Inimigo Público, lançado no mesmo ano, e Scarface – A Vergonha de uma Nação, que estreou em 1932, Alma no Lodo forma a regência trina de fitas responsável por fincar as principais características do estilo, muitas delas absorvidas até os dias de hoje: a imigração italiana, a ascensão meteórica dos fora-da-lei através das práticas ilegais, o linguajar das ruas, a violência e a crueza das negociações (neste caso, em menor escala), a lealdade entre os amigos e parentes (ou a falta dela), que em certos casos representa um valor até maior que o próprio dinheiro (neste quesito, Alma no Lodo comporta até mesmo uma leitura homossexual entre os protagonistas). Fitas desta natureza, quando realizadas nos anos 30, quase sempre acrescentavam ainda mais dois elementos à trama: a Lei Seca e a Grande Depressão Americana gerada pela quebra da bolsa em 1929.

Na sua essência, pode-se dizer que os filmes de gangsteres representam a própria idéia do sonho americano. Em todos eles, ainda que por meio escusos, observamos a obsessão dos personagens pelo reconhecimento individual, pelo sucesso, por vencer na vida. Essa característica da América como terra das oportunidades está arraigada na cultura ianque há mais de três séculos. É um sentimento que se transmite através de gerações. Não é à toa, portanto, que o gênero sobrevive há mais de 70 anos, já rendeu diversas obras-primas para o cinema, e não demonstra qualquer sinal de cansaço, ao contrário, por exemplo, dos faroestes ou musicais.

Quando Alma no Lodo foi lançado, o cinema ainda engatinhava no som. Não fazia nem três anos que Al Jonson tinha soltado a voz ao piano em O Cantor de Jazz. Os filmes falados ainda estavam se consolidando, mas o público os abraçara de tal forma que a nova técnica não tinha mais volta. Rapidamente, todos os estúdios da velha Hollywood tiveram que se adaptar ao novo sistema. Nesta fase, a Warner conheceu seu período de maior expansão, já que O Cantor de Jazz, de quem era produtora, estourara nas bilheterias. Nesta fase, o estúdio era dirigido pelos irmãos Harry e Jack Warner. No entanto, à frente da execução dos projetos estava a figura de Darryl Zanuck. Homem indispensável na estrutura organizacional, ele estava para a Warner, assim como o lendário Irving Thalberg estava para a MGM, o maior dos estúdios.

Apesar de viver num período de bilheterias favoráveis, a Warner também enfrentava os efeitos da Grande Depressão. A ordem, portanto, era não gastar. Para tanto, Zanuck mantinha controle rígido das filmagens e dos respectivos orçamentos. Não sendo um estúdio tão rico quanto a MGM, a Warner passou a se especializar em fitas de crimes, se possível com um conteúdo social. Elas tinham duas vantagens: as histórias eram diretas e sem frescuras, o que implicava em menos tempo de filmagem e menor custo de produção, tanto da parte dos cenários quanto dos figurinos (característica típica dos filmes de época, que eram a marca registrada da MGM). Além disso, quase sempre eram protagonizadas apenas por um astro, o que eliminava o papel da parceira românitca (nova redução de curstos).

Dentre as diversas produções realizadas sob estas condições, Alma no Lodo foi a que primeiro chamou a atenção do público. O papel principal foi entregue a Edward G. Robinson, romeno de nascença, que imigrara para os EUA no princípio do século e que se encontrava sob contrato com a Warner já há alguns anos. Ao contrário do seu personagem, Robinson era um homem refinado, culto e que gostava de colecionar quadros de pintores famosos. No entanto, o ator ficou eternamente marcado por papéis deste tipo, para os quais era escalado com freqüência pelo estúdio (vide O Último Gângster, de 1937, e Paixões em Fúria, de 1948).

Este tipo de vinculação entre ator/personagem nos revela outra característica da Hollywood daqueles tempos. Os executivos dos principais estúdios analisavam a viabilidade dos projetos como veículos para seus astros. Os direitos de adaptação de um livro ou de uma peça já eram comprados tendo-se em vista a adaptação do material a determinado ator ou atriz. É como se os filmes da época fossem realizados sob determinadas nomenclaturas, sempre tendo o(a) protagonista como ponto de referência. Assim, a MGM, por exemplo, dava o sinal verde para suas novas produções como verdadeiros produtos relacionados a seus contratados, como Spencer Tracy, Mickey Rooney, Greta Garbo, John Garfield, John Barrymore, John Crawford ou Wallace Berry. A Paramount, por sua vez, já vislumbrava na elaboração do roteiro se o astro principal seria Gary Cooper ou, no caso de uma mulher, se a escolha recairia ou não sobre Marlene Dietrich. A Universal tentava ao máximo se livrar da sua fama de especialista em filmes de terror de baixíssimos orçamentos, criando novos trabalhos para sua estrela mirim Deanna Durbin, uma espécie de resposta à Judy Garland (MGM) e Shirley Temple (Fox). A Columbia tinha o diretor Frank Capra como seu principal garoto propaganda, fato raríssimo para uma época conhecida por cineastas mais operários do que artistas na acepção da palavra.

Com a Warner não era diferente. Mantinha sob contrato astros do porte de Edward G. Robinson, James Cagney, Bette Davis, George Arliss, Paul Muni, Humphrey Bogart, Leslie Howard, Errol Flynn, Olívia de Havilland e George Raft. Dependendo das características de cada um destes atores, projetos específicos eram viabilizados. Robinson, Cagney, Raft, Muni e Bogart recebiam preferencialmente os roteiros dos filmes de crimes (A Floresta Petrificada, Dentro da Noite, Heróis Esquecidos, Anjos da Cara Suja, etc.). Bette Davis ficava com os dramas sentimentais, voltados ao público feminino (Jezebel, Vitória Amarga, A Estranha Passageira, A Carta, etc.); Os capas-espada tinham a dupla Flynn e De Havilland como titulares (Capitão Blood, As Aventuras de Robin Hood).

Diante deste cenário, Alma no Lodo insere-se como um típico filme de estúdio, rodado nos moldes ditados pelo padrão estabelecido: astro identificado com o gênero, orçamento reduzido e controlado e filmagem montada sob um sistema de linha de produção, semelhante às de uma indústria automotiva. Talvez a única exceção a esta regra tenha sido o diretor Mervyn Le Roy, certamente o cineasta de maior prestigio dentro da Warner ao longo dos anos 30, e que detinha uma certa autonomia sobre o resultado final. Naquele tempo, a concessão de tamanho prestígio a um profissional de trás das câmeras era algo pouco comum de se observar, já que o sistema de estúdios estava todo baseado no poder de atração e sedução que as estrelas exerciam sobre o grande público. Com honrosas exceções – e Le Roy era uma elas –, os diretores eram considerados meros operários, saindo de um filme para outro, sem nem mesmo ver a montagem final da obra.

Bom, todo esse contexto histórico é muito legal, mas... e o filme? Analisando a obra propriamente dita é inevitável não identificar suas falhas. A principal delas está na própria construção narrativa: a ascensão de Rico é desenvolvida de forma muito apressada. Na primeira cena, ele está vivendo de golpes rasteiros  e servindo-se em bares de quinta categoria. Tão logo é tomada a decisão de vir à cidade grande, o personagem já aparece sendo aceito numa associação criminosa. Para quem veio do interior, desconhecido dos grandes mafiosos de Chicago, Rico é admitido sem muito questionamentos e investigações sobre seu passado. Quando percebemos, ele já está assumindo o convite para administrar inclusive os territórios de mafiosos rivais. É certo que a intenção do roteiro é mostrar que a rapidez com que se sobe no tecido social, é proporcional à da queda. O problema, no entanto, é outro: Rico ainda não tinha demonstrado tanto talento para conquistar espaços tão grandes nas organizações. Seu poder torna-se, de certa forma, inverossível aos olhos do espectador. O que contamina todo o segundo e terceiro terço do filme, ambos baseados nessa escalada do personagem.

Outro ponto que compromete são as interpretações. Com exceção de Edward G. Robinson, verdadeiro motor do filme, os demais atores geralmente super-representam. Exemplo disso é o motorista da gangue que, arrependido, caminha até a igreja para confessar seus pecados com o padre. Douglas Fairbanks Jr. exagera na candura ao contracenar com a personagem Olga, transparecendo uma ingenuidade próximo à infantilidade. O chefe de polícia, então, é o poço da canastrice, fazendo suas investidas contra os mafiosos através de ironias regadas a caras e bocas. Todos esses problemas na atuação nem devem ser creditados tanto ao diretor ou aos atores, mas sim à característica de interpretação da época, ainda impregnada com o estilo exagerado do cinema mudo.

Por último, o roteiro comete a falha de não demonstrar qual a atividade ilícita que move aquelas organizações. Pelas circunstâncias, sabemos que se trata de tráfico ilegal de bebidas. No entanto, ao longo de todo o filme, não há uma só ação criminosa revelando Rico e seus comparsas vendendo álcool para os bares da região. Na verdade, o único delito mostrado na fita é o assalto ao Clube Palermo, o que não justificaria tamanha estrutura criminosa.

Alma no Lodo, no entanto, está repleto de belos momentos. Esta mesma seqüência de assalto é brilhantemente filmada, do ângulo das pernas dos assaltantes, montada inteiramente com fusões. O assassinato na escadaria da igreja nos remete imediatamente a um dos homícidios que selam o acerto do contas na cena do batismo em O Poderoso Chefão. A apresentação da gangue ao novato Rico, com tomadas rápidas entre todos seus integrantes. O atentado em Rico no meio da rua. Entre outras.

Mas a principal qualidade da fita é, sem dúvida, a interpretação de Edward G. Robinson. Considerado por muitos como um dos melhores atores de todos os tempos, Alma no Lodo nos obriga a quase concordar com essa opinião (talvez acima de Robinson, somente Spencer Tracy). Robinson caracteriza seu Rico através do linguajar rápido, da gíria, da exploração da vaidade e ambição do personagem (que se tornam evidentes na cena em que ele se deixa fotografar e da experimentação do fraque em frente ao espelho). Poucos tinham tamanha presença em cena e naturalidade na arte da representação. Duas seqüências ficaram famosas: a primeira delas, é a tomada em primeiro palno, dentro do abrigo (Robinson, batido pelo álcool, parece um cão ferido, rosnando a cada notícia que os sem-teto lêem sobre ele no jornal); a outra, é a que fecha o filme, na qual Rico, após pronunciar, com uma aparente surpresa no olhar, uma das frases mais famosas do cinema, depara-se finalmente com seu destino.

Indicado apenas ao Oscar de melhor roteiro adaptado e agraciado, em 2000, com o National Film Registry para aqueles filmes que, pela qualidade cultural e artística, mais resistiram ao tempo, Alma no Lodo é considerado por quase toda a crítica, especialmente a americana, um dos maiores clássicos do cinema de gangsteres. Umas daquelas obras raras, que representam ao mesmo tempo a gênese e o símbolo de um gênero. Compartilho em parte com estas manifestações, embora sem o mesmo entusiasmo. Apesar disso, não posso deixar de considerar Alma no Lodo, por tudo o que ele representa, ainda que seja mais pelo ponto de vista histórico do que técnico, um filme obrigatório.

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