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Críticas

Cineplayers

O ponto de partida de uma das carreiras mais interessantes de Hollywood.

7,0

É sempre interessante analisar os primeiros trabalhos da carreira de um diretor hoje consagrado. Tratando-se de um cineasta autoral, que construiria uma temática em futuros projetos, os filmes iniciais normalmente já apresentam a visão diferenciada do diretor, ainda que de forma reduzida e em estágios iniciais de desenvolvimento. Por exemplo, é fácil perceber por onde seguiria a carreira de Alfred Hitchcock ao se assistir aos seus primeiros filmes mudos, da mesma forma que a verve ácida para diálogos de Billy Wilder está clara em seus primeiros roteiros. Essa interpretação também vale para Amarga Esperança, primeiro longa dirigido pelo hoje cultuado Nicholas Ray.

A produção é baseada em um livro de Edward Anderson e conta a história do romance entre os jovens Bowie e Kicchie. Ao fugir da prisão ao lado de dois outros comparsas, o rapaz acaba conhecendo a moça em um refúgio, e logo se cria uma identificação entre eles. Após um assalto a banco com os outros fugitivos, Bowie escapa e acaba se casando com Keechie. Mas as coisas nem sempre funcionam para o casal, pois o jovem é procurado não somente pela polícia, mas também pelos ex-companheiros que querem sua ajuda para um novo trabalho.

Amarga Esperança tem início com uma cena inusitada, incomum, mas que funciona bem como forma de dar situar a história. Nicholas Ray abre o filme com um rápido plano dos dois amantes, auxiliando-se de uma legenda: “Este rapaz e esta garota ainda não foram realmente apresentados ao mundo”. O clima lúdico da cena e a frase que a acompanha deixam claro que Ray tem o objetivo de mostrar como o mundo pode ser um lugar sujo e opressivo, capaz de dirimir sonhos e esperanças de felicidade. Ainda que a forma com a qual é filmada torne-a datada, a cena funciona de maneira perfeita para posicionar Amarga Esperança dentro do conceito que será desenvolvido.

E é exatamente nesse sentido que o filme tem seus méritos. Ray é extremamente hábil na construção da atmosfera de desespero na qual os protagonistas se encontram. A utilização da noite como prisão e, ao mesmo tempo, única condição na qual os personagens se sentem confortáveis é muito eficaz. O tema é constantemente trabalhado, tanto pela câmera de Ray quanto pelos diálogos (além, claro, do título original em inglês), fazendo com que o próprio espectador sinta-se inseguro quando o casal está à luz do sol. A sensação é a de que o mundo construiu para Bowie e Keechie uma armadilha da qual eles não conseguem sair. As tomadas aéreas a partir de helicópteros (entre as primeiras realizadas pelo cinema) ainda colaboram para a criação desse clima, reforçando a ideia de que se trata de uma história de fuga, não de amor.

Nesse sentido, é possível notar um certo tom autoral que perpassa toda a obra. Ray apresenta em Amarga Esperança o ponto de partida para alguns temas que desenvolveria em sua filmografia: além da presença ameaçadora da escuridão, destaca-se um olhar de ternura para personagens que vivem à margem da sociedade. Bowie, em essência, não é uma pessoa ruim, ainda que seja visto assim pelo mundo. Ray trata-o (e, de certa forma, Keechie também) exatamente dessa forma, como se Bowie tentasse se encaixar no ambiente que o cerca para viver uma vida normal, mas sendo constantemente repelido por seus esforços. Nasce aqui a preferência do cineasta por personagens amargurados, perdidos, que não conseguem encontrar seu lugar na sociedade.

Outro ponto importante desenvolvido no filme é a questão da esperança, que igualmente domina a obra. O título nacional não deixa de ser bem inspirado nesse sentido, uma vez que o roteiro (do próprio Ray e de Charles Schnee) trata exatamente sobre este tema, com os protagonistas sonhando por um futuro que o espectador e até eles mesmos sabem que não virá. Há belas colocações a esse respeito durante todo o filme, como quando um personagem diz a Bowie: “Não quero lhe dar esperanças quando elas não existem”. Essa sensação de que o final não será feliz para o casal atormenta o público desde o início de Amarga Esperança, como se uma sombra pairasse por toda a jornada dos protagonistas, e a plateia, do lado de cá, nada pudesse fazer para evitar isso.

Por outro lado, se isso contribui em parte para construir uma sensação incômoda, ao mesmo tempo prejudica a obra por torná-la previsível. Não há grandes surpresas na estrutura do roteiro e o espectador não precisa de qualquer esforço para descobrir como tudo irá terminar. Da mesma forma, se a mão e o olhar de Ray eram hábeis na forma de retratar seus personagens lutando contra o mundo, não possuíam a mesma intimidade em histórias de amor: o romance entre Bowie e Kitty é contado de forma exageradamente teatral, mesmo para a época. Claro que de nada ajuda a inexpressividade de Farley Granger e sua falta de química com a jovem Cathy O’Donnel.

Amarga Esperança, apesar de um bom filme, sobrevive até hoje graças à curiosidade de ser o trabalho inicial de Nicholas Ray. É uma obra bem construída e com diversos valores, ainda que a trama em si tenha sido prejudicada pela ação do tempo. Mas aqui é o momento no qual o cineasta coloca em celulóide, pela primeira vez, sua visão de mundo que se faria presente em toda a filmografia e o faria entrar para o rol dos grandes diretores. Um ponto de partida curioso para uma das carreiras mais interessantes do cinema norte-americano.

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