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Críticas

Cineplayers

Muito Tony Scott para pouco Tarantino.

6,0

Reza a lenda que, ao assistir pela primeira vez a Assassinos por Natureza (Natural Born Killers, 1994), Quentin Tarantino, autor do argumento, afirmou: “Oliver Stone arruinou meu filme!”. Talvez a situação e as palavras não tenham sido exatamente essas, mas é fato que Tarantino, hoje, renega a versão da história de Mickey e Mallory Knox levada às tela, pelo fato de que Stone e os roteiristas David Veloz e Richard Rutowski fugiram muito da trama original criada pelo cineasta. Ainda assim, a declaração parece exaltada demais: mesmo que Assassinos por Natureza não seja aquilo que Tarantino idealizou, e mesmo que Oliver Stone cometa uma série de excessos estilísticos, trata-se, de qualquer maneira, de um ótimo filme, uma sátira contundente à mídia e à imbecilização do público, capaz de tratar assassinos em série como verdadeiros astros. Na realidade, a declaração de Tarantino talvez caiba melhor a Amor à Queima-Roupa (True Romance, 1993), mais um roteiro seu levado às telas por outro cineasta – no caso, o irregular Tony Scott –, porém com resultados ainda mais duvidosos.

Não que Amor à Queima-Roupa seja um filme ruim. Pelo contrário, é uma aventura divertida, com muito da irreverência, provocação e outras características típicas do cinema de Tarantino: as referências ao universo pop, os diálogos deliciosos, os personagens à margem da sociedade e, claro, o alto grau de violência estilizada estão todos lá. Ao longo dos anos, a produção ganhou até mesmo uma certa condição de cult, mas isso provavelmente se deve mais à curiosidade de conhecer um dos primeiros trabalhos de um dos roteiristas/diretores mais cultuados das últimas décadas do que propriamente pela qualidade da obra. Sim, há muito com o que se divertir em Amor à Queima-Roupa, porém a produção parece funcionar mais por seus elementos isolados do que como um todo, uma vez que a visão mais tradicional do cineasta Tony Scott jamais parece ser capaz de abraçar totalmente o estilo incendiário e toda a inovação narrativa proposta por Tarantino.

Scott, à época, nada mais era do que um diretor de filmes ação formulaicos, como Top Gun – Ases Indomáveis (Tog Gun, 1986) e Dias de Trovão (Days of Thunder, 1990). Operário da indústria do cinema – ainda que razoavelmente competente –, o cineasta poderia ter aproveitado o material para, talvez, construir um filme tão importante para a década de noventa quanto foram os próprios Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992) e Pulp Fiction – Tempo de Violência (Pulp Fiction, 1993). Infelizmente, porém, Scott preferiu abordar o texto de maneira mais óbvia, em uma narrativa convencional que dilui muito da proposta tarantinesca. Além de uma trilha sonora completamente inadequada, os excessos de cortes presentes em Amor à Queima-Roupa são um imenso contraste com o cuidado e o domínio que Tarantino tem em relação ao tempo de cada uma de suas cenas: a velocidade o estilo videoclíptico que Scott imprime ao filme inevitavelmente acabam diminuindo o impacto das palavras do roteiro, indiscutivelmente a grande qualidade da obra.

Diante disso, Amor à Queima-Roupa acaba soando apressado, pouco coeso, como se muito do texto original tivesse ficado perdido em algum lugar no meio do caminho. É o caso, por exemplo, do personagem de Christopher Walken, que aparece em apenas uma cena, e de um apenas citado Blue Lou Boyle, que em determinado momento parece importante à trama para, ao final da obra, o espectador se dar conta de que ele jamais apareceu. Claro que estes problemas podem ser creditados ao próprio roteirista, mas é difícil acreditar nisso conhecendo os trabalhos posteriores de Tarantino e o cuidado com o qual constrói seus argumentos. Como se não bastasse, Scott trata os personagens com distanciamento, como se fossem atrações, animais de circo, e não pessoas de verdade – Tarantino, por outro lado, em seus filmes, parece completamente apaixonado por cada um dos personagens. Assim, a plateia jamais compreende quem é Clarence ou Alabama, uma vez que o cineasta não parece ter esse objetivo: eles estão ali com o único propósito de parecer cool e declamar as falas do roteiro, não para serem interessantes.

Com isso, o que salva Amor à Queima-Roupa é exatamente o roteiro de Quentin Tarantino, que traz tudo aquilo que conquistou fãs em todo o mundo nos anos seguintes. O filme já começa com um diálogo que bebe na fonte da cultura pop, sobre Elvis e o astro de artes marciais Sonny Chiba. Aliás, em que outra mente poderia ter surgido a ideia do casal principal se conhecer exatamente no cinema, em uma mostra dos filmes de Chiba? As divertidas referências ao mundo do entretenimento que se tornaram praxe na obra de Tarantino estão presentes em toda a produção, como ao tratar papelotes de cocaína como Dr. Jivago, bem como os monólogos que também já se tornaram típicos de seus personagens. E, mesmo que Amor à Queima-Roupa não esteja entre seus filmes mais celebrados, não é exagero algum afirmar que a obra traz alguns dos melhores diálogos já escritos por Tarantino – ainda que um deles, preguiçosamente, tenha sido recriado em Pulp Fiction (“So why are you trying to fuck him”?). É o caso, por exemplo, do discurso do personagem de James Gandolfini sobre como é matar uma pessoa ou, claro, na cena mais conhecida do filme, o brilhante desafio de inteligência e sagacidade entre Christopher Walken e Dennis Hopper: além de um texto brilhantemente composto, são dois grandes atores em tela, em um duelo que dá vontade de assistir diversas vezes.

E, já que foram citados Walken e Hopper, é preciso dizer que o elenco de Amor à Queima-Roupa é um atrativo à parte. Se Christian Slater, nada mais do que correto aqui, e Patricia Arquette, encontrando uma mistura interessante de sensualidade e inocência para a sua personagem, jamais conseguiram se tornar grandes estrelas da indústria, não deixa de ser curioso acompanhar em papéis secundários nomes que pouco depois viriam a se tornar astros de primeiro escalão. O já citado Gandolfini, por exemplo, explodiu como Anthony Soprano, mas é em Amor à Queima-Roupa que teve uma de suas primeiras grandes oportunidades – já do lado do crime, por sinal. O mesmo ocorre com Samuel L. Jackson, em uma rápida participação, e com Brad Pitt, hilário no papel do colega de quarto doidão que passa o tempo inteiro fumando maconha e assistindo televisão. Também não pode ser deixada de lado a presença de Gary Oldman, à época já um ator conhecido, que parece se divertir como nunca interpretando o cafetão branquelo que pensa ser negro (e é interessante perceber como boa parte do elenco voltaria a trabalhar com Tarantino em seus filmes posteriores).

Assim, diante do visível contraste de estilos artísticos entre Tony Scott e Quentin Tarantino, é praticamente impossível não se perguntar: e se Amor à Queima-Roupa fosse também dirigido por seu roteirista? Difícil ter uma resposta definitiva, mas o fato é que o filme funciona graças à mão de Tarantino e apesar das intervenções de Scott. É divertido, é rápido e é ágil, mas, sem dúvida, é muito menos do que poderia ser.

Edição (27.11.2017): Amor à Queima-Roupa foi recentemente lançado em DVD no Brasil pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, em edição inédita e especial de colecionador, cópia remasterizada e uma hora de extras com cenas deletadas, final alternativo e depoimentos dos atores Brad Pitt, Dennis Hopper e Val Kilmer, entre outros conteúdos. Mais informações no site da distribuidora.

Comentários (4)

Marcus Almeida | quarta-feira, 12 de Outubro de 2011 - 14:19

Pô filme é divertidão, o maior problema é o excesso de clichês, então a culpa é do roteiro, que é do Tarantino.

DRIVER | quarta-feira, 12 de Outubro de 2011 - 15:27

Excelente análise. Falou tudo o que eu penso do filme. Aliás esses dias revi true love apenas para ver a cena Walken x Hooper. E o diálogo do início sobre sonny chiba e elvis.

Marcus Almeida | quarta-feira, 12 de Outubro de 2011 - 20:40

É mesmo, Danilo.

Outro defeito que eu destaco do filme é que o Vincenzo, baita personagem, some do nada.

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