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Críticas

Cineplayers

A China muda e Zhang Ke observa.

7,0
Um dos mais relevantes diretores da China atualmente, Jia Zhang Ke mudou desde que ganhou o Leão de Ouro em Veneza por Em Busca da Vida (2006). Uma prova é o violento Um Toque de Pecado (2013). Mas também se mantém o mesmo, como visto em As Montanhas se Separam (2015). E no meio do caminho há o seu novo filme Amor até as Cinzas (2018), invocando vários diretores que Jia já foi em um mesmo filme.

O filme se passa no submundo do crime organizado chinês, ao menos em seu início. É onde conhecemos Qiao, com uma paixão devotada pelo namorado, o gângster Irmão Bin. Como de hábito, o cotidiano dessa parcela da população está sempre sujeito a estourar em traições, atentados e assassinatos. 

Muitas instâncias são observadas aqui nesse filme, e o que chama a atenção em um primeiro momento é como o diretor, afeito a ser cronista da China no século XXI observa com ternura e interessa a transição do antigo regime comunista para a economia de mercado peculiar da china, seja vendo a população jovem dançando música disco nas boates da máfia ou então quando Qiao interrompe um discurso trabalhista do pai berrando ao microfone que a classe trabalhadora deve ser protegida.

Um segundo filme começa na cena mais gráfica da obra, quando Qia salva a vida do namorado de uma gangue rival e é presa por cinco anos por porte ilegal de arma. Ao melhor estilo de Um Toque de Pecado, a violência não é nem um pouco agradável de se ver. A sonorização é seca, a câmera anda e trepida, cada golpe é um baque sensorial.

É depois da soltura de Qiao que Jia se dedica mais ao drama social ao estilo de filmes como Prazeres Desconhecidos e Plataforma. A protagonista busca o namorado enquanto atravessa o país de trem, aplicando pequenos golpes para conseguir comer, viajar e dormir em hotéis. O cronista Jia observa aqui os esquecidos pelo sonho de prosperidade da potência econômica chinesa, os que tiveram a vida bagunçada e, acima de tudo, tiveram que se reinventar enquanto cidadãos e seres humanos. Muitas cenas desse momento poderiam estar facilmente em um documentário.

Após os “dias de cão”, novo filme. E uma certa interseção entre os dois. O casal se reencontra mas já não é mais o mesmo, em uma antítese da cena que evoca o clássico gangsterismo que foi selecionada para pôster americano do filme: ao contrário do homem e a mulher atirando,  temos uma cena de emoções especialmente difíceis (mágoa, reconciliação) em um plano-sequência contínuo que vai da repulsa à cumplicidade e irá resumir todo o magoado terceiro ato e seu clima geral de degradação. 

Amor até as Cinzas é o retrato de personagens em várias fases, encarnando vários arquétipos, experienciando e sofrendo de novas realidades em uma China mutante. Tudo isso filmado por um diretor que abraça vários cinemas e persegue vários horizontes, organizando um fluxo de imagens absurdamente diferentes entrelaçadas tanto por um realismo frontal quanto um ocasional absurdo (violento, fantástico ou cômico) que mesmo que não arrebate pessoalmente alguns fica difícil recusar uma visão tão única de um cronista tão original.

Filme visto no Festival de Cinema do Rio de Janeiro

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