Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O amor e suas mentiras.

9,0

Fora terem sido dirigidos por Billy Wilder, qual o ponto em comum entre os filmes Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959), Sabrina (idem, 1954), Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), Testemunha de Acusação (Witness of the Prosecution, 1957), Se Meu Apartamento Falasse (The Apartament, 1960), Cupido Não Tem Bandeira (One, Two, Three, 1961), Irma La Douce (idem, 1963), Beija-me, Idiota (Kiss me, Stupid, 1964), Fedora (idem, 1978) e, finalmente, Amor na Tarde (Love in the Afternoon, 1957)? Por mais que sejam trabalhos tão diferentes um do outro, já que Wilder gostava muito de passear por gêneros, todos guardam uma semelhança muito pertinente, que talvez seja o grande tema da filmografia de seu realizador: a farsa. Sejam músicos travestidos para escaparem da máfia, ou a menina sonhadora que volta toda repaginada de sua viagem à Paris para conquistar seu grande amor, ou a atriz decadente que ainda vive de aparências, ou o homem que aluga seu apartamento para encobrir as mentiras de alguns nomes influentes, ou o cara que quer fazer um comunista se passar por capitalista, ou o ex-policial que se finge de rico lorde inglês para conquistar uma prostituta e impedi-la de continuar com sua vida desregrada, ou a prostituta que se faz de esposa para ajudar um cantor falido a ganhar dinheiro, ou mesmo em falsos funerais – quase tudo na filmografia de Wilder converge, cedo ou tarde, para um momento de ocultação, de fingimento.

Em cada caso ele explorava um lado diferente desse mesmo tema, de forma tão eficaz, que nem sempre é tão óbvio para o espectador desavisado sacar que, em suma, Wilder teve uma carreira surpreendentemente regular em volta de um único assunto principal. Até porque ele camuflava isso muito bem, já que o tema em pauta é justamente saber se esconder bem por trás de algum artifício. No caso de Amor na Tarde, a exploração dessa questão do disfarce é usada para promover um doce romance entre uma garota jovem e inexperiente e um Casanova já meio fora de forma. Ariane Chavasse (Audrey Hepburn) é o que podemos chamar de típica personagem de um filme de Wilder. Para o garanhão Frank Flanagan (Gary Cooper), ela é uma mulher decidida, vivida, misteriosa, ardilosa e até mesmo perigosa, sendo que na verdade ela não passa de uma moça frágil, sonhadora e desmiolada. Para poder salvar a vida de Frank, e logo depois conquistá-lo a ponto de não se tornar apenas mais uma em sua lista de affairs, Ariane deve ocultar até mesmo seu nome, abrir mão de todo seu jeito de ser – um preço alto a pagar.

De certa forma, os personagens de Wilder sempre pagam um preço muito alto por conta dessa questão da farsa. Porque cedo ou tarde, para que a história atinja seu clímax, eles devem ser desmascarados. Esse tema acaba desencadeando um objetivo claro para todos os seus filmes: até quando eles conseguirão sustentar aquela encenação, e como eles vão se enrolando conforme o tempo vai passando. No caso de Ariane, esse caminho a percorrer ganha contornos cômicos e, na maioria das vezes, românticos. Quanto mais ela tenta, quanto mais finge ser uma mulher vivida, blasé, desinteressada nele, mais ela sofre por dentro com o medo de que ele nunca venha a amá-la se descobrir sua verdadeira identidade. Ela teme a realidade, e os personagens de Wilder sempre temem suas verdadeiras identidades. Fingir é sempre mais romântico, mais empolgante, mais engraçado, mais desafiador, mais perigoso, mais recompensador, e até mais fácil, mas nunca uma opção duradoura.

Nasce daí a situação complicada e ao mesmo tempo tão delicadamente filmada por Wilder. Tudo se desenrola em Paris, e como nos é narrado no início do filme, as coisas realmente acontecem por lá de outra maneira. Em Paris, principalmente nos filmes, o ritmo muda, o tempo desacelera e se torna quase desimportante, e o amor ganha outra dimensão. Nosso narrador, o pai de Ariane, explica que em Paris eles podem até não amar melhor que em outras cidades, mas certamente eles amam mais. Os novos e os velhos amam, os ricos e os pobres, os existencialistas, as estátuas, os da margem direita do rio, os da margem esquerda do rio, os no meio do rio, os animais, os casados, os solteiros, os adúlteros etc. Eles amam de manhã, de madrugada, de noite e, mais importante no caso do nosso casal principal, à tarde. Ariane e Frank se amam sempre à tarde, ao som da melodia de Fascinação sendo tocada ao vivo por um grupo de músicos contratados, em uma suíte do hotel Ritz. E porque esse detalhe é tão importante, a ponto de ganhar espaço no título do filme? Porque é durante a tarde que Ariane pode assumir sua outra identidade e viver o romance que sempre sonhou, sem despertar suspeitas em seu pai e sem deixar que Frank descubra sua verdadeira pessoa. É o único momento do dia em que ela é feliz, e pra ela vale a pena mentir para conseguir manter o máximo possível esses encontros.

A ternura dessa situação desigual entre Ariane e Frank proporciona o charme tão encantador de todo o trabalho. Enquanto ela tem acesso aos detalhes mais íntimos da vida dele por meio dos arquivos de seu pai, um renomado detetive de casos extraconjugais, ele não sabe absolutamente nada dela. Ela é capaz de manipulá-lo com facilidade, tê-lo em suas mãos com um estalar de dedos, enquanto ele fica à mercê de suas jogadas. Se não fosse pela farsa de Ariane, a situação seria justamente contrária, ele certamente a manipularia, usaria e jogaria fora, e ela cairia como um patinho no jogo dele. Ela não tem outra opção senão fingir, e por isso nós não a condenamos em momento algum, e ficamos aflitos só de pensar na reação dele quando descobrir toda a verdade.

Sempre criticando a sociedade de farsantes em que vivemos, Billy Wilder faz aqui uma doce observação a respeito da mentira na vida do ser humano, analisando-a sob um diferente prisma. Todos nós precisamos de um pouco de fantasia, de um pouco de mentira, mesmo sabendo que isso pode nos colocar numa futura situação difícil. Mais do que ninguém, Wilder frisou isso na maioria dos seus filmes, muitas vezes de forma ácida e crítica, o que não é o caso desse trabalho apaixonante. Mentir e fingir por dinheiro, poder, posição social, fama, trapaça e trambique pode até ser condenável ou engraçado em seus outros filmes, mas quem ousaria julgar alguém que mente e que finge apenas por um pouco de carinho?

Comentários (4)

Douglas Braga | terça-feira, 02 de Abril de 2013 - 21:33

Bacana o texto, Heitor. Belo filme mesmo. E pensar que criticaram na época o fato do Cooper ser "velho" para o papel, e isso foi até fundamental.

Matheus Câmara | quarta-feira, 03 de Abril de 2013 - 01:12

Cooper canastrão, no melhor estilo Cary Grant (se não me engano, o papel foi dado a Gary pelo fato da recusa de Grant), e uma Audrey toda doce, menininha, fazem deste filme um encanto só.

Um Wilder menos lembrado, mas de forma alguma menor.

Faça login para comentar.