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Críticas

Cineplayers

Ainda que a sua ousadia esteja limitada à época, segue ainda hoje um filme impecável em quase todos os sentidos.

9,0

Na década de trinta, início da chamada Época de Ouro do cinema norte-americano, os filmes produzidos no país foram submetidos a um código de ética que ficou conhecido como Código Hays – baseado no nome do presidente da MPPDA (Motion Picture Producers and Distributors of America), William H. Hays. Este código, que na prática durou até o final dos anos sessenta, tinha como objetivo vigiar a “moral” do que era exibido nos cinemas, criando uma série de limitações às produções da época. Entre as definições estabelecidas, estavam, por exemplo, que o sexo fora do casamento não poderia ser mostrado como algo agradável ou natural, que os vilões e bandidos deveriam sempre receber punição, que o homossexualismo e outras formas de “perversão sexual” (como foi definido na época) jamais poderiam ser abordados e, claro, que a nudez era estritamente proibida.

Obviamente, o Código Hays nunca foi visto com bons olhos por diretores e roteiristas, que contestavam as limitações impostas. Ao longo de todo o período, um bom número de cineastas ousou forçar os limites das regras e, pouco a pouco, na medida em que filmes sem o selo de aprovação da MPPDA começaram a se sair bem nas bilheterias, o Código Hays foi perdendo a sua força. Entre os diretores que tiveram a coragem de bater de frente com as restrições estava o austríaco Otto Preminger. Já um cineasta respeitado na década de cinquenta, inclusive com uma indicação ao Oscar por Laura (idem, 1944), Preminger realizou filmes que, de forma nem tão sutil, abordavam alguns dos temas proibidos pelo Código Hays, por exemplo: sexo e virgindade em Ingênua Até Certo Ponto (The Moon is Blue, 1953), uso de drogas em O Homem do Braço de Ouro (The Man with the Golden Arm, 1955) e estupro e adultério em Anatomia de um Crime (Anatomy of a Murder, 1959).

Este último chegou a ser proibido em alguns lugares devido à franqueza com a qual abordava os assuntos citados, fazendo com que os personagens dissessem palavras proibidas à época com a maior naturalidade. No entanto, Anatomia de um Crime não é lembrado até hoje unicamente pela ousadia em relação ao seu tempo. Trata-se, pura e simplesmente, de uma grande realização cinematográfica, um filme dirigido com a precisão e o rigor típicos de Preminger, sobre um roteiro milimetricamente construído e interpretado por atores no auge de suas formas. E os elogios não são exageros. A obra de Preminger é, ainda hoje, um grande exemplo de como contar uma história e, não por acaso, normalmente considerada uma das melhores produções do subgênero “filme de tribunal”.

Analisado no contexto do período, um material como o de Anatomia de um Crime só poderia ter sido levado às telas por um diretor do calibre de Otto Preminger. Roteirizado por Wendell Mayes a partir de um livro de John D. Voelker, o filme, além dos temas espinhosos, contava com uma duração extremamente longa, especialmente para uma produção passada, na maior parte do tempo, dentro das quatro paredes de um tribunal. O cineasta, provavelmente, deve ter salivado quando descobriu o material: como se não bastasse a oportunidade de forçar os limites da moral aceitável à época, tratava-se de um desafio para qualquer diretor manter a plateia interessada nos acontecimentos durante as duas horas e quarenta minutos de projeção.

Na primeira questão, deve ser avaliado que o que era visto como ousado naquele tempo, hoje provavelmente não chamaria a atenção de uma criança. A trama é, sim, recheada de tensão sexual e certo um clima de lascívia: as aparições de Laura (ironia ou não, título de um dos filmes mais famosos de Preminger), interpretada maravilhosamente por Lee Remick, são todas repletas de sensualidade, como se ela estivesse constantemente seduzindo os homens ao seu redor sem o menor apreço pelo seu marido ou pelo casamento. Assim, o filme sugere, nem sempre de forma sutil, uma mulher a favor da liberdade sexual, simbolizando o que começava a ocorrer nos EUA e, claro, viria a explodir de vez na década seguinte. Preminger, no entanto, opta por mostrar absolutamente nada. Não há uma cena de sexo e o próprio estupro, centro de toda a trama, jamais é visitado em flashback, sendo revelado unicamente pelas palavras de Laura.

Esta escolha do cineasta se mostra bastante acertada – e, na verdade, é um dos pontos principais de Anatomia de um Crime. Além de fazer com que o espectador utilize sua própria imaginação para recriar a cena, Preminger acaba deixando em dúvida a veracidade do relato da personagem. A plateia jamais fica sabendo se o que ela fala realmente aconteceu ou se é apenas uma história inventada para desviar a atenção do seu marido de uma outra verdade: o possível caso dela com a vítima. Com isso, o cineasta consegue dois grandes feitos: primeiro, uma vez que todo o enredo se desenvolve a partir da história de Laura, coloca em questão o próprio papel e a confiabilidade da Justiça, capaz de aceitar a versão de uma testemunha como prova condenatória; e, em segundo, mantém o espectador sempre com dúvida em relação às verdadeiras intenções da personagem – alguns pequenos detalhes e gestos (jamais explicitados) indicam que a relação entre ela e o tenente poderia estar com problemas, o que leva à questão: será que Laura saía com Barney Quill e mentiu para ele? Definitivamente, ela não parecia nem um pouco triste com o fato de seu marido estar preso

A ambiguidade moral, aliás, não se limita unicamente a Laura (ironicamente, o mesmo nome que dá título a um dos filmes mais famosos de Preminger). Boa parte dos personagens principais também são construídos pelo roteiro sobre tons de cinza, sem definições fáceis sobre quem são e quais as suas verdadeiras motivações. Anatomia de um Crime não tem mocinhos e vilões bem delineados; pelo contrário, seus protagonistas parecem fugir de qualquer espécie de rótulo, sendo capazes de tomar atitudes questionáveis logo após agirem de forma correta. O tenente Manion, por exemplo, é sempre mostrado de maneira recatada por Ben Gazzara, sem grande gestos ou palavras, como se para alimentar o mistério em torno de sua natureza. O próprio Paul Biegler, que deveria ser o exemplo de retidão da obra por se tratar do personagem principal, não hesita em “ganhar” o juiz com um suborno disfarçado relacionado à pesca.

Claro que, para essa complexidade realmente se tornar convincente, é fundamental um elenco de talento e bem preparado. James Stewart, à época um dos grandes astros de Hollywood, utiliza a sua persona de bom moço para conquistar a simpatia da plateia logo nos primeiros instantes, levando o espectador a relevar qualquer possível desvio de conduta que venha a ter nos acontecimentos posteriores. Enquanto isso, além das já citadas ótimas presenças de Remick e Gazzara, Anatomia de um Crime ainda traz George C. Scott hipnotizante em um de seus primeiros papéis e as participações inspiradas de Arthur O’Connell, como o amigo alcoólatra de Biegler, e de Joseph N. Welch, que rouba quase todas as suas cenas com as tiradas espirituosas do juiz Weaver.

O humor, aliás, é presença constante no roteiro de Anatomia de um Crime. Como se o desenvolvimento dos personagens e a precisão naquilo que é apresentado à plateia não fossem suficientes, os diálogos elaborados por Wendell Mayes são sempre inteligentes e perspicazes, realçados por um toque de ironia e acidez que acabam por transformá-los em verdadeiros deleites para os ouvidos. É difícil conter um sorriso, por exemplo, quando o juiz do caso diz a seguinte pérola a uma das testemunhas: “Nada de piadinhas. Deixe isso para os advogados” ou quando a assistente do protagonista rebate, após ser “demitida”: “Você não pode me demitir até me pagar”. Praticamente todos os personagens têm direito a diálogos inspirados, entregues de forma impecável pelos atores, como é também o caso do discurso final de McCarthy sobre a beleza da formação de um corpo de jurados.

No entanto, mesmo com todas estas qualidades, é o trabalho de direção de Otto Preminger que faz de Anatomia de um Crime um grande filme ainda hoje. Como já mencionado, a obra se estende por duas horas e quarenta minutos, com a maior parte desse tempo ocorrendo dentro de um único espaço. É um verdadeiro desafio para qualquer cineasta e, por essa razão, provavelmente o maior atestado da maestria de Preminger na construção de suas cenas. Mesmo com a longa duração, Anatomia de um Crime jamais se torna cansativo, tanto pela história e personagens interessantes quanto pelo domínio completo da mise-en-scéne por parte do cineasta. Preminger posiciona a sua câmera e seus atores dentro do quadro de forma sempre inteligente, explorando ao máximo a limitação de espaço do cenário. Este rigor na concepção visual atinge o ápice em um momento maravilhoso, na qual o promotor de George C. Scott fica encobrindo o advogado Paul Biegler, enquanto este último busca uma posição para que possa aparecer para a plateia – ou, no que diz respeito ao universo fílmico, enxergar a testemunha. É uma cena divertida, sim, mas principalmente uma prova do talento de um cineasta que sabe posicionar os seus elementos dentro de uma composição de plano para atingir os seus objetivos.

Contando ainda com créditos iniciais assinados pelo mestre Saul Bass e uma ótima trilha sonora de autoria de Duke Ellington, Anatomia de um Crime é aquele raro tipo de filme no qual tudo parece estar no seu devido lugar. A trama é bem erigida, os personagens construídos com cuidado e a condução por parte de Preminger é sempre precisa e adequada.

Um dia, há muito tempo atrás, Anatomia de um Crime pode até ter ajudado a derrubar um código de ética que limitava a criatividade de roteiristas e cineastas. Hoje é, pura e simplesmente, um grande filme.

Comentários (3)

Danilo Oliveira | sábado, 04 de Julho de 2015 - 21:45

Que resenha SENSACIONAL, Silvio Pilau, muito sagaz!!!

Thiago Soares Mota | segunda-feira, 22 de Agosto de 2022 - 14:51

Parabéns pela crítica, meu amigo cinéfilo! Um texto excelente sobre um grande filme...

Fontana Borges | domingo, 03 de Março de 2024 - 19:41

Simples e elucidativo. Parabéns!

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