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Críticas

Cineplayers

Imagens partidas.

8,0
Sem créditos, letreiros, música ou qualquer anúncio antes de seu início, Anjos Caídos (Duo Luo Tian Shi, 1995) começa seco, no meio de um diálogo, com os dois protagonistas conversando sem se olhar, interagindo sem contato físico. Cada um mira uma direção além do alcance da câmera, perdido em seu próprio mundo. Fora de sintonia, como se não estivessem presentes na mesma cena/situação, eles partem cada qual para uma narrativa diferente e o diálogo que os liga é cada vez mais distante. Nessa Hong Kong afundada em violência, amoralidade e luz neon, configurada em espaços apertados e sufocantes, Kar Wai Wong acompanha o trajeto de dois corações errantes através de rimas visuais e narrativas que ora se complementam, ora se projetam em lados opostos, alcançando uma inesperada e curiosa simetria. 

O diretor, esteta nato, constrói a narrativa a partir de fragmentos de tempo e espaço, partindo sua história em mil pedaços e a remontando de acordo com a lógica nem sempre linear de suas imagens, deixando pelo caminho arestas e lacunas que jamais são de todo preenchidas. Os três personagens centrais transitam por entre esse labirinto de recortes urbanos, também divididos e nem sempre agindo ao mesmo tempo, como parece indicar a frenética montagem paralela adotada pelo diretor. No cinema de Kar Wai Wong, os personagens são comandados pela situação, nunca o contrário, e por isso chegam num ponto de quase total abstração ao serem assimilados como parte inanimada das imagens, só conseguindo se comunicar e dialogar através das reflexões narradas em off, como se somente a alma e o interior deles interessasse à trama. Por isso a natureza da relação deles é sempre mantida em tom de mistério, um enigma a ser desvendado e elucidado apenas pela lógica das imagens e não das palavras, em uma narrativa que só existe enquanto cinema e que jamais sobreviveria em outro formato. 

Ainda assim, há a sensação de intimidade, proximidade, entre eles, que contraria toda a configuração espacial onde eles raramente se esbarram. A trilha sonora não apenas pontua o ritmo, mas também é absorvida como parte efetiva da diegese, narrando as emoções que prevalecem mesmo diante do silêncio daquelas imagens. Como que presentes numa casa de espelhos, eles parecem se enxergar, mas nunca de fato alcançam um ao outro. É um tipo de mise-en-scène muito moderna, sensorial, que vai apostar muito mais no poder do cinema enquanto imagem e som, rebaixando qualquer outro recurso narrativo esclarecedor ou que pontue um norte ao espectador. O interessante nesse cinema experimental do diretor é o alcance subconsciente que ele atinge, principalmente quando conseguimos entender toda a trama sem que jamais isso nos seja exibido da maneira convencional, apelando para uma sensibilidade interior que de alguma forma traduz aquela cadência de imagens e consegue desvendá-la de dentro do abstracionismo que impera. 

Anjos Caídos é um filme muito mais radical, estética e narrativamente, do que os dois filmes anteriores de Kar Wai Wong que tinham pontuado seu amadurecimento como cineasta: Amores Expressos (Chong Qing Sem Lin, 1994) e Cinzas do Passado (Dung Che Sai Duk, 1994). O tom praticamente amador, experimental, transmite a ideia de um autor procurando desconstruir o que havia desenvolvido até então para depois se reinventar. Cru, visceral e sem um pingo da elegância dos dois filmes anteriores, ele aqui tomava um passo fundamental para a renovação e o amadurecimento que o levou a realizar um futuro trio espetacular que marcou seu auge: Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, 1997), Amor à Flor da Pele (Fa Yeung Nin Wa, 2000) e 2046 - Os Segredos do Amor (2046, 2004). 

Finalmente Anjos Caídos chegou em DVD ao Brasil, pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, em edição de colecionador remasterizada. Nos extras, um pouco sobre os bastidores da produção e uma entrevista interessante com Christopher Doyle, o diretor de fotografia. Recentemente, também foi lançado o DVD de Amores Expressos (pela Classicline), então vale aproveitar o nome do diretor em alta no mercado de home vídeo nacional e conhecer ou revisitar sua rica filmografia. 

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