Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Obra-prima de Alain Resnais que foge dos convencialismos.

9,0

Ano Passado em Marienbad é um filme difícil de digerir – aliás, dificílimo. Contudo, não há razão para pânico agora: esta crítica não irá partir de uma retórica acadêmica – pelo contrário. A “pretensão” aqui é outra, é a de justamente abordá-lo de forma não-pretensiosa, oferecendo uma degustação do filme, uma impressão, ou então uma pequena introdução a esta obra que é uma das mais discutidas e controversas da história do cinema francês – e não seria exagero dizer do cinema mundial. Este é um filme europeu por excelência, do chamado “cinema de autor”, sendo freqüentemente objeto de estudo em teses e dissertações, costumeiramente citado na bibliografia sobre a teoria do cinema, bem como caracteriza um daqueles longas que rendem centenas de artigos científicos e análises pelo viés da semiótica e da filosofia. Mas reitero: este não é (necessariamente) o caso.

Dirigido por Alain Resnais, um dos mais importantes nomes no movimento de cinema francês conhecido como Nouvelle Vague, que aconteceu em meados das décadas de 50 e 60 e teve como principais expoentes os cineastas Jean-Luc Godard, François Truffaut e o diretor do filme em questão, que por sua vez também tornou-se conhecido pelo longa Hiroshima Meu Amor.  O movimento, entre muitas outras características (que renderiam um enorme artigo só para si), elevava a figura do diretor de cinema ao cargo máximo imaginável dentro do filme, este que passava a ser acima de tudo o reflexo dos seus anseios artísticos, estéticos e pessoais, demonstrando sua visão particular de mundo. O diretor passa a dispor da mesma autonomia que, por exemplo, obtiveram os compositores de música erudita no período clássico, onde a obra não mais seria feita simplesmente sob demanda, mas que, para ser dotada de legitimidade, deveria originar-se de elementos mais subjetivos e intangíveis proporcionados por seus autores. É interessante mencionar um pouco do contexto em que Ano Passado em Marienbad surgiu para posteriormente ao menos compreender a sua suposta inelegibilidade, principalmente se comparado ao “abecê” do cinema dito vigente e comercial. Com o movimento da Nouvelle Vague, haveria um evidente choque de valores, que confrontavam tanto com o modelo de produção do cinema enquanto produto de uma indústria, mas que inevitavelmente também trazia para a tela conseqüências na própria linguagem do material produzido, rompendo com diversas tradições do modelo predominante que fora forjado nos EUA, especialmente por D.W. Griffith, que de qualquer modo tem seus reflexos ainda hoje.

Enfim, mas vamos direto ao ponto. Filmada em preto e branco, a trama do filme é apresentada por meio de uma gama de imagens ambientadas em um luxuoso palacete, um hotel deslumbrante repleto de salões com seus lustres rebuscados, escadarias vertiginosas, corredores infinitos e estatuas atemporais. Em meio a esse clima de arquitetônicas paisagens imbuídas de um tom aristocrático, desenrola-se um pouco trivial triângulo amoroso, onde um homem (denominado simplesmente como “X”) tenta, a todo custo, fazer a mulher (personagem intitulada “A”) lembrar-se do romance que teriam tido um ano antes. O problema é que a dama, na companhia de seu marido (este por sua vez o “M”), de início sequer lembra de alguma coisa. O curioso é o fato de que, apesar do impasse o qual vivencia, a mulher ora sente-se repelida, ora atraída por aquele homem e pelos detalhes e passagens que a faz rememorar e as sensações que lhe são invocadas. Detalhes sutis como a sua mão que repousa sobre seu ombro, o espelho da penteadeira, as estátuas, ou seja, todas as menções que o homem faz agem no psiquismo da mulher de maneira que sua memória seja afetada, e sentimentos materializados em imagens pouco convencionais venham involuntariamente à tona. Tal qual como concebeu o escritor francês Marcel Proust na sua obra Em Busca do Tempo Perdido, ainda no início do séc. XX, que fazia uso do recurso da “memória involuntária”, como ficou bem exemplificado na célebre passagem do livro onde apenas o sabor de uma Madeleine (bolinho típico francês) mergulhada no chá poderia trazer as mais derradeiras sensações e lembranças.

O filme, graças ao modo único como é conduzido, dada a sua narrativa singular e seu não-comprometimento com a linearidade em toda a lógica cinematográfica clássica, abre campo para as mais distintas reações e interpretações. É possível acabar de assisti-lo com a (por vezes) deliciosa sensação de não ter entendido nada, além de ter se deixado prazerosamente levar pelo seu clima delirante e pelo esplendor de suas imagens – ou seja, simplesmente deleitar-se.  É possível, após o fim da exibição, estar com não só com a plena sensação de entendimento como estar fervilhando de interpretações. Também uma possibilidade a ser levada em conta ao estar diante do filme é a de ficar simplesmente irado com tamanha barbárie de grafia cinematográfica, ou pior, nem sequer ter paciência para concluir esta experiência.  Contudo, pessoalmente creio que o filme, assim como o imenso livro de Proust, é uma obra que tem por finalidade principal discutir a forma de se pensar o tempo (neste caso no cinema). A memória involuntária não restringe-se somente a uma remomeração consciente dos fatos do passado, mas evoca também sensações, possibilita revisitar um tempo e um sujeito que não existem mais. E a transformação constante do sujeito passa a refletir na estrutura e na estética da obra. O que justifica certos artifícios, como momentos de repetição constante de certas ações – e ainda por cima em montagem paralela. Desse modo, vale dizer que o filme é apresentado em escala tridimensional, pois os elementos narrativos são expostos como fluxo de consciência, e cada detalhe pode levar a uma progressiva desordem dos sentidos, como dizia o também francês poeta Rimbaud.

Há também, como bem discorre o pesquisador Arlindo Machado em seu livro “Pré-Cinemas & pós-cinemas”, a questão da dualidade entre “cinema e sonho” e “cinema e subconsciente” em Ano passado em Marienbad. Para Machado, este filme é sem dúvida o mais onírico de toda a história do cinema. Uma vez que o longa é todo permeado por constantes inserções de um suposto narrador e de “vozes do além”, essas palavras da trilha sonora por assim dizer formam fragmentos acústicos que retornam em vários momentos, nos contextos mais diversos. Ao passo que passam da boca de um para a boca de outro personagem, são proferidas em off, trazendo para o filme corpos e elementos ausentes, que na minha opinião, estão dispostos bem à moda “proustiana”.  Também com este artifício, o diretor leva a discussão sobre até que ponto a fala e o som no cinema estão ligados aos seus correspondentes, pois uma vez que estão de tal modo fundidos com a imagem em um filme convencional, se deixam, em certo sentido, serem “visualizados” petrificando-se aos seus objetos correspondentes. Alain Resnais estava consciente do poder de fogo deste filme, a polêmica e a discussão que poderia gerar, tanto como causou ao estrear no Festival de Cannes em 1961 e como ainda permanece nos circuitos de estudo de cinema.

Uma curiosidade deste filme é que, assim como por vezes acontece, foi elaborado um remake compacto desta obra por meio de um videoclipe. Coube a banda inglesa Blur, que também realizou algo semelhante no clipe da música “The Universal” com Laranja Mecânica, levar Ano Passado em Marienbad ao clipe da canção “To The End”, que é simplesmente imperdível. Vale a pena correr visualizá-lo no YouTube, onde com a mais absoluta perfeição é recriada toda a atmosfera e todos os principais planos concebidos por Alain Resnais, só que desta vez com a atuação dos integrantes da banda que, ao lado do Oasis, reinou nos anos 90 com o gênero de rock chamado britpop. O filme também foi surpreendentemente indicado para o Oscar de melhor roteiro original em 1963 – o que evidencia que a academia por vezes tem lampejos de ousadia e contempla obras que fogem do convencionalismo e do dito conservador – que neste caso, é a pura vanguarda.

Comentários (3)

Daniela Smaniotto | terça-feira, 27 de Dezembro de 2011 - 01:23

Primeiramente gostaria de dizer que gostei muito da resenha - embora tenha algumas ressalvas com a relação à memória proustiana.

Cheguei a esse filme por um percurso diferente. Não sei se você conhece a obra A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, se não, recomendo a leitura, afinal, o filme seria inspirado nesta obra.

Laís P. | quarta-feira, 29 de Janeiro de 2014 - 03:59

Excelente resenha!

Tiago Nunes | sábado, 05 de Março de 2016 - 15:23

Texto excelente, ótima menção ao clipe do Blur.

Faça login para comentar.