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Críticas

Cineplayers

Contrastes de um cinema em construção.

7,0
Ao Cair da Noite (2017) faz parte do conjunto de filmes de horror lançados nos últimos anos que se apresenta como parte de um cinema autoral ou independente e goza de aclamação da crítica. Como os outros filmes dessa leva — O Babadook (2014), Corrente do Mal (2014), A Bruxa (2015) e Corra! (2017) —, é dirigido por um cineasta em seu primeiro longa-metragem ou que, pelo menos, nunca teve um de seus filmes amplamente distruibuído até então. Mal há, portanto, produções o bastante desses diretores para que possamos nos referir a obra individual de cada um ou, de modo mais amplo, a uma nova geração do cinema de horror. Mas é curioso, ainda assim, perceber como há um aspecto de primeiro filme envolvido em todas essas obras, no modo como se apoiam em referências cinéfilas, como parecem ansiosas por revelar sua assinatura autoral e na ambição muito evidente das suas metáforas.

E, apesar de Shults estar em seu segundo longa-metragem — seu primeiro, o drama familiar Krisha (2015), circulou em diversos festivais de cinema —, é Ao Cair da Noite, entre todos, aquele que me parece carregar o fardo de primeiro filme de forma mais dura. Se a marca dos primeiros passos sempre esteve muito clara nesses filmes, ela nunca foi antes algo além de um convite charmoso a acompanhar um cinema em formação e uma proposta muito incipiente de reconstrução de um gênero. Neste filme, no entanto, a falta de habilidade se apoia em noções muito restritas de como operar dentro do gênero, o que o deixa a uma certa distância dos seus pares.

A história é mínima. Uma família vive em radical isolamento para se proteger de um vírus fatal. Uma noite, um estranho tenta invadir a propriedade em busca de água para sua própria família, também isolada. Quando a circunstância da invasão é esclarecida, as duas famílias decidem ser mais seguro e vantajoso se unirem em um isolamento comum. A economia de trama é um dos grandes fortes do filme, mas ela poderia ser ainda reduzida a uma brilhante sequência na segunda metade do filme que soma no máximo 10 minutos e dá o ponto de partida para o desfecho da narrativa. Nessa única sequência, estão contidas todas as nuances desse universo distópico e a delicadeza muito genuína de Travis (Kelvin Harrison Jr.), o garoto de 17 anos que parece resistir de uma forma muito íntima à paranoia e o isolamento de seus pais, que o treinam para que aprenda a se proteger com a mesma brutalidade deles.

Quando se volta para a construção de Travis e da inadequada sensibilidade desse personagem, o filme se desarma do tom grave e de toda sua estrutura cênica de suspense para realmente olhar para esse personagem, ponderar sobre sua experiência naquela casa, naquela família, sobre seus desejos. Mas basta que se desvie a perspectiva para que o filme volte a recorrer a uma abordagem solene e novos clichês do cinema de suspense/horror/thriller, como a seriedade autoconsciente da fotografia e a trilha sonora “atmosférica”. A mão pesada da direção parece ignorar a lição mais valiosa do próprio personagem que criou: é possível experimentar de outra maneira aquele universo de horror, é possível encontrar nesse espaço algo além de medo e paranoia.

Seria bastante agradável entender que a contradição entre o tom que o filme dá ao universo e o modo como se aproxima de Travis é parte de uma escolha criativa para distinguir este personagem do resto. Mas, mesmo que seja o caso, o filme se permite ser arrastado por essa construção de cena cerimoniosa por tempo demais para se dizer imune a seu gosto duvidoso. Sequências inteiras parecem estar presentes apenas para instituir, repetidamente, a gravidade daquela situação.

Ainda assim, não consigo evitar um certo apreço por esse constraste. Quando um gesto muito trivial de gentileza de Travis (na breve sequência em que o filme se restringe de comentar formalmente sobre o universo e permite que os seus personagens o experimentem por conta própria) desencadeia uma intensificação da paranoia dos outros personagens e consequentemente também a reestruturação do tom convencional do filme, as irregularidades da obra parecem encontrar uma tênue justificativa. É ainda a marca dos primeiros passos, não apenas do diretor, mas de toda essa investida em uma reconstrução do gênero. É preciso pensar no que o horror tem a oferecer esteticamente e explorar outras notas do gênero — por isso acho que Corra!, em seu flerte com a sátira cômica, é tão valioso a esse conjunto de filmes. Ao Cair da Noite tem seus deslizes, mas há bastante chão para se reerguer adiante.

Comentários (7)

Bri DeFur | sexta-feira, 23 de Junho de 2017 - 08:48

Assisti ontem e não consigo definir se gostei ou não, aliás, gostei mas...parece que faltou algo ali pra ser um "amei" hehe, quando assisti A Bruxa, It Follows, Corra, A Cura....saí do cinema pisando em nuvens de satisfação...mas esse alguma coisa ali não me deu aquele "estalo", preciso ler/assistir críticas com spoilers, talvez eu tenha perdido algo, muitas vezes tenho devaneios em meios aos filmes e tenho que revê-los rsrs

Felipe Lima | sábado, 24 de Junho de 2017 - 19:41

Belo texto, Cesar. Tive as mesmíssimas impressões.

Alexandre Carlos Aguiar | domingo, 29 de Outubro de 2017 - 23:32

Se fôssemos colocar o DVD nas prateleiras de videoteca, com toda a certeza iria para a área de drama, nunca de terror. É um bom drama, e serve como isto, porque como terror falta-lhe argumentos explicativos. Nada de didatismos, mas a inserção de contexto não existe.

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