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Arábia

(Arábia, 2017)
7,9
Média
84 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A fugaz chave para a luz.

9,0
O estereótipo do que é 'ser mineiro' chega a dar as caras, ainda que apenas de maneira suave, em Arábia, segundo filme da dupla Affonso Uchoa e João Dumans. Se no anterior, A Vizinhança do Tigre, os realizadores se valiam de uma linguagem documental para contar histórias da periferia mineira em situações onde o crime estava à espreita e o tema se entrelaçasse naquelas vidas para além da divisão entre o real e o ficcional, a dupla agora lança mão de uma ficção pura e simples, ainda que o realismo continue presente. E, enquanto filme mineiro, não há de se estranhar os lugares comuns do natural de lá, embalando o espectador numa linguagem e numa coloquialidade que diverte tantas vezes, ainda que o clima seja sempre de melancolia. Pois é exatamente a melancolia do protagonista Cristiano, da cidade onde ele vai parar e é palco do começo da trama (numa narrativa de espaço temporal circular construída de maneira brilhante), que o filme acaba se arvorando cada vez mais.

Cristiano não tem muito rumo definido, seja no que diz respeito a sonhos, ao futuro ou à sua vida momentânea. Ele simplesmente vive, e deixa a vida seguir. Depois de cumprir pena por um roubo de veículo, Cristiano sai disposto a tentar. E como ele mesmo diz, não para: trabalha em diversas fábricas, ajudante de cozinha, ajudante de obras, garçom, caminhoneiro; nosso herói narra suas desventuras, os lugares por onde passa, as pessoas com quem cruza, seu senso de liberdade que nunca funciona como uma bandeira ou meta, apenas é como é. Toda essa saga é descoberta por André, um adolescente vizinho de Cristiano que acha uma espécie de diário com todos esses relatos, e a partir deles acompanhamos esse desenrolar narrado pelo próprio senhor de seus atos. A história de Cristiano toca a de André, e ainda que não tenhamos o resultado daquela transformação, o personagem literário avança, atropela e impõe sua força.

Talvez esse seja mesmo o único defeito do grande vencedor do Festival de Brasília desse ano. Ora, nem é algo muito escalafobético: um personagem lê sobre outro. Obviamente aquela vida será alterada, certo? Pois a narrativa abole essa situação, e a partir do momento que a leitura começa, o personagem André não somente perde a força, ele praticamente não volta mais. Estamos a mercê da mansidão do nosso protagonista, e a verdade é que a placidez com a qual a vida se move ao redor dele é pra lá de fascinante. Com um desenrolar pautado pelo naturalismo e um sem número de 'desacontecimentos', o filme de Uchoa e Dumans parece versar sobre a rapidez típica da nossa sociedade, que nos leva a lugar nenhum absolutamente. A forma como aquele grande monte de nada é encarado, sempre da forma mais solene e emocional possível, dá o real gancho para que esse tal nada seja ressignificado e transformado em algo de verdade.

O trabalho musical de Arábia se vale de aplicações de algumas faixas que acabam retratando muito do longa. A premiada e delicada trilha de Francisco César vez por outra dá lugar a alguns clássicos do cancioneiro brasileiro, como as toadas interpretadas pelo elenco Marina de Dorival Caymmi e Cowboy Fora da Lei de Raul Seixas, a primeira em clima de karaokê e a segunda numa roda de amigos que transmite o tanto do afeto que serenamente vai tomando conta da narrativa. Mas é uma versão clássica de Três Apitos na voz de uma jovem Maria Bethania que não sairá da cabeça de ninguém; a ela cabe emoldurar uma passagem da vida de Cristiano que ele entende e assume como inesquecível, e que paralisou seu caminho. Mesmo em processo de eterno deslocamento, Cristiano teve suas parcas certezas interrompidas em dois momentos intensamente dramáticos mas tratados de maneiras bem destoantes pelo roteiro, ambas determinantes para compreendermos o longínquo olhar do protagonista, que é traduzido pela canção de Noel Rosa. 

A criação dos planos do filme também indicam o requinte que já tinha sido mostrado no longa anterior. Os créditos de abertura são exibidos durante um passeio de bicicleta de André, um plano sem cortes por uma longa estrada; o filme vai então intensificando a luz de Leonardo Feliciano, que recorta do plano sempre exemplarmente tudo que é excesso. O complexo trabalho de decupagem do filme tira aos poucos o regionalismo por trás de Cristiano para filtrar uma universalidade dada pelo olhar do leitor André, que nos transporta para um universo que sai do lugar perdido e meio árido de escolhas para uma realidade de leveza e realização, talvez o ápice de uma existência tão pouco exigida. A treva no qual nosso heroi parece abraçar tão ferozmente acaba riscando de ponta a ponta a história contada a quatro mãos, e teimando em apontar o breu num período onde a sociedade não sabe lidar com o carinho simples. Alheio ao que experimentou de intenso e caloroso, a vã busca de Cristiano talvez reflita nossa própria condição de não saber mesmo viver o livre e o leve, quando a expectativa da escuridão sempre nos espreitar.

Visto na 9ª Semana - Festival de Cinema

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