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Críticas

Cineplayers

Uma Assunção íntima e pulsante.

8,0
Em seu primeiro filme longa-metragem, o diretor Marcelo Martinessi continua o caráter memorialista visto em curtas como A Voz Perdida (2016), que falava sobre o massacre ocorrido em Curuguaty em 2012 ou Karai Norte (2009), sobre a Guerra Civil Paraguaia de 1947 que deixou cerca de 30.000 mortos entre civis e militares. Com As Herdeiras, a abordagem de Assunção sobre a burguesia não é diferente.

Chela e Chiquita são um casal onde as duas mulheres descendem de ricas famílias, mas agora têm de lidar com a transformação do tempo. Já no início do filme, aprendemos que estão vendendo os bens para conseguir pagar a casa e que Chiquita irá passar um tempo na prisão por fraude. Isso força Chela, alienada da vida, acostumada a um cotidiano regrado, silencioso e asséptico, a sair de casa, onde encontrará novas experiências que ressignificam a vida que levava até então. 

Primeiro, Chela começa a dirigir uma espécie de táxi particular para velhas senhoras ricas. Espectadora nesse tipo de situação, vê as mesmas fofocarem, dispararem pequenas crueldades e serem frequentemente incisivas. Ainda assim, recém-chegada à terceira idade, tendo sua relação aparentemente oculta do resto do mundo e tendo que vender seus bens para poder continuar tendo um teto, é uma deslocada daquelas pessoas que vivem e habitam em seu entorno: não à toa, Martinesse sempre enfoca Chela à espera na antessala e desfoca em segundo plano as senhoras no salão de jogos. São pessoas que estão perto mas, ao mesmo tempo, muito distantes.

Segundo, o surgimento de Angy na narrativa, uma mulher mais jovem que pede ajuda a Chela para transportar sua mãe para tratamento em uma cidade distante. Entre esperas e conversa, surge um novo sentido na vida de Chela: além de transportar senhoras, visitar Chiquita na cadeia e lamentar-se para a doméstica Paty; a conexão emocional surgida no maior vazio da sua vida dá-se com uma mulher experiente mas ao mesmo tempo de energia jovial e sensual, não deixando ser dominada pelos namorados e ensinando uma ou outra rebeldia à Chela (usar óculos escuros e fumar, comportamentos tipicamente de adolescentes e jovens adultos) preenche e ao mesmo tempo balança a personagem principal, que passa de mera espectadora e sofredora passiva a uma participante ativa, alguém com sua própria narrativa.

Martinessi tem uma maneira bem particular de mostrar isso. Sombras dominam os rostos dos seus personagens - a luz natural e as externas só são reservadas para momentos específicos. Na maior parte do tempo, tudo enclausura Chela - sua velha e antiga casa visitada por compradores, a prisão e os lamentos de Chiquita, a casa onde as senhoras idosas vão jogar. A questão do foco, também, é marcante: o diretor utiliza do recurso para “descolar” a personagem do mundo, alienando-a da realidade, que chega como surpresa às cenas completamente focadas, onde a figura principal compartilha a definição com outros companheiros de cena ou apenas com seu fundo - junto com Chela, o espectador aprende a novamente perceber o mundo.

A montagem econômica e de poucos cortes, os planos demorados e os grandes silêncios dão origem a outro recurso: o reenquadro - ou quadro dentro do quadro servindo como ponto de vista. A utilização mais comum é Chela vendo os compradores sem falar com eles - ela observa atrás da fresta de uma porta dupla, transformando o espectador em voyeur ao “falsear” uma razão de aspecto quadrada ao invés do habitual retangular da atualidade. A visão é centralizada, perde-se a percepção do todo - e não é a única vez em que o filme usa esse bloqueio de maneira narrativa: até a personagem tomar ações de fato, tudo parece distante, tudo parece feito apenas para ser assistido e jamais participar. O filme parece ser mais sobre decadência e menos sobre uma passagem, que é semeada lentamente.

Com um título que alude tanto à situação social de suas personagens quanto ao legado e memórias que carregam de outros contextos políticos e sociais, As Herdeiras ganhou o prêmio de Melhor Atriz para Ana Brun como Chela, que passiva de início, acaba carregando o filme nas costas e silenciosamente tornando-se dominante em cenas, da quietude e da introspecção para a ação de fato, pela imposição sutil sobre o mundo através de diálogos, chegando ao final do filme uma pessoa transformada, com resquícios de antes mas com traços do futuro já definidos. O final aberto é simbólico nesse sentido e habitou o filme todo, pois não é um guia a ser seguido, mas uma jornada a ser descoberta pelos nossos passos e nossas escolhas.  

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