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Críticas

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O que sobrou da esquerda?

6,0

As Neves do Kilimanjaro, originalmente, é o título que se refere a um dos contos mais famosos da história da literatura, de Ernest Hemingway. Sem se ater em suas possíveis interpretações de viés poético ou político, ficou conhecido sobretudo por evocar uma emblemática figura do leopardo, ou melhor, do que restou da carcaça do leopardo que ousou subir até o topo da geleira da montanha africana, na casa de Deus. No trecho mais conhecido, o conto diz: "Ninguém explicou o que o leopardo estava procurando em tal altitude." Talvez seja símbolo daquele que foi além de seus limites, o agitador que quis sair da superfície rasa, um explorador do desconhecido, o alter ego do próprio escritor.

Num primeiro momento, As Neves do Kilimanjaro (Les neiges du Kilimandjaro, 2011), o filme de Robert Guédiguian, nada tem a ver com as aventuras selvagens narradas e vivenciadas por Hemingway. Michel (Jean-Pierre Darroussin) é um líder sindicalista de trabalhadores do porto, e está a fazer um sorteio de 20 empregados a serem demitidos em prol do benefício comum, da manutenção da classe. Justo, idealista, manteve seu nome entre os papéis, e acabou sendo, por si próprio (e por uma desventura do destino), sorteado e afastado daqueles que sempre foram seus propósitos existenciais – seu trabalho e a militância sindical.

Curiosamente Michel está caracterizado fisicamente de forma semelhante a do escritor norte-americano. Liberto das agruras do trabalho, da luta em nome de um grupo, agora desempregado, vive o momento onde pode finalmente desfrutar da vida, curtir a família, “dar uma de Hemingway” e sair se aventurar pelo mundo afora. Mas o que pode representar uma nova abertura de possibilidades torna-se um período de introspecção, de balaço, de reflexão sobre perdas e ganhos. A virada na trama acontece quando Michel, seu melhor amigo, e respectivas esposas, são assaltados em seu pacato domicílio, onde o dinheiro ganho de presente de aniversário de casamento, justamente advindo de uma vaquinha dos colegas da classe trabalhadora para proporcionar uma viagem a montanha que dá título ao filme,  é levado, e a possibilidade de conhecer as tais neves, anulada. Os sonhos e a vida, aquela que se almeja depois de anos de labuta, no momento em que chegou para ser vivida, são literalmente roubadas junto com a primeira HQ do Homem-Aranha que guardava desde a infância, a gênese que inspirou a sua trajetória como líder idealista e a formação de seu caráter. Furtada justamente por um próprio colega que ajudou a defender – uma típica e desleal traição.

Uma série de eventos inusitados e razoavelmente improváveis acontecem dali em diante conduzindo o drama, fazendo com que o personagem repense seu posicionamento político sob diversos pontos de vista. Michel é a carcaça do que foi na juventude. Diálogos chorosos e saudosistas com sua esposa Marie-Claire (Ariane Ascaride) trazem à tona o questionamento: “No que nós viramos? Tornamos-nos aquilo que atacávamos quando jovens. Pequenos burgueses.

Guédiguian dá um tom um tanto enfadonho, morno e burocrático ao filme, no firme propósito de fazer o espectador refletir sobre o que sobrou da esquerda. Entrega de bandeja suas intenções, força a amizade em uma sequência de situações inverossímeis para um filme que se propõe realista, com o intuito de expor e defender uma tese, resultando num frágil e questionável otimismo em relação a política e ao ser humano. Ainda há esquerda? Há lugar para revoluções e revolucionários? Tem um argumento que faz lembrar um Edukators (Die Fetten Jahre sind vorbei, 2004), mas ao contrário, às avessas, do ponto de vista do assaltado. Fará sentido tal distinção entre esquerda e direita nos dias de hoje? Perguntas evocadas em plena França, berço da política moderna, com população politizada, que tem o costume de tomar as ruas (touts ensemble!), nação que proporcionou 14 anos seguidos de mandato de um presidente do partido socialista, que foi François Mitterrand. Esta problemática é apresentada mostrando múltiplas facetas de um hipotético conceito de posicionamento político, influenciado pelo embargo da condição pessoal, demandas familiares e mutações sensíveis a ação do tempo. Com o cenário mediterrâneo da cidade de Marselha, a crise do casal de meia idade é a crise da ideologia, da utopia do século passado, onde essas premissas, como a ideia de que a esquerda teria se desvirtuado, pendido para uma direita camuflada, e seja simplesmente uma sombra do que foi, são apresentadas de forma didática, insossa, pressupondo um novo olhar para o outro e para si mesmo, onde ninguém é inocente e todos têm seus impulsos justificáveis e legítimos (Guédiguian diz ter acompanhado o governo Lula assiduamente e guarda opiniões críticas, mas ao mesmo tempo condescendentes a seu respeito, por exemplo). É justamente aí que a narrativa e o filme como um todo ganham ares de maniqueísmo, de panfletarismo, exalado artificialmente nos diálogos teatrais dos personagens. Cenas quadradas em situações folhetinescas, numa direção seca que pouco envolve cinematograficamente. A esposa de Michel, mais do que um personagem, paira como uma porta-voz de um discurso moralista, onde seu papel cabe em sistematicamente apresentar a problematização de uma França atual, que até então era presidida por Sarkozy, numa crise de identidade que recentemente levou, assim como ocorreu, ao retorno de um governo de orientação socialista, que é representado na figura de François Hollande. Propósito legítimo, mas como cinema, partindo do drama pessoal e familiar para remeter a questões governamentais atuais (claramente a crise europeia), é  algo entediante, oferecendo muito pouco ao espectador interpretar por si só o filme. Ele mesmo oferece respostas imediatas às suas perguntas, antes de qualquer questionamento e reflexão do espectador.

São curiosas algumas das contradições. As cenas são pontuadas e intercaladas por uma canção tema de Joe Cocker. Michel se diz antiamericano, chama o inglês de língua dos colonizadores, mas vê no Homem-Aranha um ídolo, a fonte de inspiração para sua orientação esquerdista. Há um pôster do herói da Marvel na central sindical. Tal como um Robin Hood, um belo dia ele mesmo se viu no papel inverso. Sua única virtude talvez seja a mesma do também trabalhador do cais Terry Maloy (Marlon Brando), de Sindicato de Ladrões (On The Waterfront, 1954): a conquista da sua consciência. Seu código ético é a sua grande qualidade inspiradora. Este serve de ponte para se concluir que não há mais unidimensionalidade nos posicionamentos políticos, sobretudo os de esquerda - se é que um dia houve. Porém, As Neves do Kilimanjaro seria melhor, como filme, se libertasse de seguir por uma retórica que prega uma cartilha de forma tão restritiva e limitada.

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