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Críticas

Cineplayers

A tragédia social pelo olhar de um diretor de westerns.

9,5

As Vinhas da Ira, filme norte-americano de 1940, é um longa-metragem que faz um retrato social do país mais próspero do planeta, no seu momento de maior miséria desde que se estabeleceu como nação. Centra-se na classe popular, na massa de trabalhadores do campo, que na época da grande depressão foram obrigados a deixar suas casas e terras, condenados a vagar pelos EUA no mais absoluto estado de pobreza.

A história apresentada no filme é uma adaptação para o cinema do livro best-seller homônimo do escritor ganhador do prêmio Nobel, John Steinbeck, que realizou a obra baseado numa intensa pesquisa que fez por anos ao longo de todo o país. Para conferir maior autenticidade e realidade a narrativa que construiria no livro, o autor seguiu famílias agricultoras desalojadas do estado de Oklahoma na sua jornada até as lavouras da Califórnia, em busca de trabalho, no auge da crise econômica norte-americana nos anos 30. A miséria generalizada que se seguiu à Depressão de 1929 é o tema central da obra desse importante escritor realista. Não por acaso, recebeu pela crítica literária a alcunha de "sociólogo da literatura", ou mesmo de "documentarista dos horrores da vida dos pobres". Poucos escritores americanos se debruçaram com tanta propriedade e embasamento sobre a fragilidade do sonho americano.

John Ford, que já era um dos maiores diretores de Hollywood, foi escalado para dirigir esta produção, pelo fato de que os estúdios acreditavam que ele era a pessoa certa para transpor para as telas algo que fosse genuinamente um drama social realista do país. O fato curioso está em que John Ford foi um cineasta que predominantemente filmou faroestes, e se definia como um diretor de western, como declarou certa vez. Embora seus filmes transitem pelo cinema de gênero, sobretudo o faroeste, Ford sempre imprimiu uma visão não maniqueísta dos personagens, dando voz aos marginalizados do país e ao lado ambíguo do heroísmo típico do cinema, como pode se verificar em filmes seus anteriores e posteriores a esse, de No tempo das diligências (1939) a Rastros de Ódio (1956). Seu tema preferido, e que é bastante notável em As Vinhas da Ira, é a glória dos vencidos, a grandeza dos derrotados.

Para o papel do protagonista Tom Joad, Ford escalou Henry Fonda, que pouco tempo atrás havia estrelado A Mocidade de Lincoln (1939) e Ao Rufar dos Tambores (1939), dois outros filmes sobre a história da América, também dirigidos por Ford. Dentre os outros papéis, John Caley como o amigo Muley, e John Carradine como o pastor. Ford costumava trabalhar com os mesmos atores por uma questão de afinidade, mas o que não deixa de ser um reflexo do star system do cinema norte-americano, prevalecendo mesmo em situações onde o cinema aborda o drama social dos marginalizados.

Entretanto, sempre foi uma característica marcante de seu cinema, profundamente enraizado numa linguagem clássico-narrativa, o cuidado com a composição dos planos – Ford possuía um senso plástico inato que se manifestava em cenas de grande beleza visual. Bem como optava por uma edição extremamente enxuta e ágil, contendo-se em mostrar o mínimo necessário para compor uma narrativa direta e linear, num estilo semelhante ao de seu contemporâneo Howard Hawks. Inclusive, Ford era famoso por sua objetividade no cinema e seu rigor nas filmagens, onde bastava um take para cada cena e a edição já era "fechada" na própria câmera.

É notável seu trabalho nesse sentido em As Vinhas da Ira. Um típico exemplar do estilo fordiano, há aqui a chamada montagem invisível, assim como descrevia seu trabalho o crítico e teórico francês André Bazin, bem como Ismail Xavier atribuiria o termo “transparente”. Pode-se notar de forma clara no filme a câmera quase sempre imóvel, os closes são reduzidos e as panorâmicas descritivas. Embora trabalhe em As Vinhas da Ira com o recurso do flashback, geralmente dispensa recursos chamativos na montagem. Com uma linguagem extremamente direta, Ford filmava pouco, sem ensaiar com os atores e adorando improvisar.

Para As Vinhas da Ira, John Ford fez uma escolha importante: escalou Gregg Toland para ser o diretor de fotografia do filme, o que responde as marcantes características visuais que a produção possui. Pelo êxito que obteve em As Vinhas da Ira, Toland foi escolhido para ser o diretor de fotografia de Cidadão Kane. Muitos dos artifícios de linguagem cinematográfica que tornam Cidadão Kane tão celebrado por sua linguagem já estavam presentes aqui. Em As Vinhas da Ira, há um primoroso trabalho de construção de planos, de perspectiva e profundidade. Um estudo preciso da angulosidade e disposição de linhas de força dentro dos quadros, sobretudo o virtuosismo com que trabalha com a fonte de luz.

Ao longo de todo As Vinhas da Ira a iluminação utilizada é pontual, as fontes de luz são geralmente velas e lampiões, mas é fato que há um detalhado trabalho para fazer uma iluminação artificial se fazer passar por uma iluminação natural em situações precárias de sobrevivência. As sombras são fortemente carregadas, desempenhando um papel semiótico demonstrando o lado sombrio da vida americana marginalizada economicamente. Sem contar com a própria função de perspectiva que estas sombras geram, algo em que Toland era especialista. A pouca iluminação, trabalhada com muito aprimoramento técnico no que se refere a manipulação de lentes e escolhas de negativos, desempenha um papel artístico e dramático fundamental, como na cena memorável, onde a Mãe (Jane Darwell), queima os pertences que não pode levar consigo na noite anterior ao dia em que precisam abandonar a fazenda.

Embora altamente manipulada e planejada pela técnica, o que distanciaria o filme de um retrato fidedigno da realidade, a fotografia e o filme encontram seu viés de verdade e realidade, uma vez que Gregg Toland realizou seu trabalho inspirado nas fotografias que haviam sido tiradas da tragédia por fotógrafos contratados pelo governo, como Dorothea Lange – num trabalho onde realizou o famoso retrato “Mãe Emigrante”, de 1936, uma referência visual para John Ford neste filme. Justamente na cena onde a composição do plano é a mais inspirada nas fotos verídicas do acontecimento, aproximando-se da realidade, é exatamente num dos raros momentos onde a câmera se movimenta, na sequência da chegada da família no acampamento de desabrigados da Califórnia, onde a câmera paira em movimento sobre rostos sofridos dos ocupantes em seus barracos caindo aos pedaços.

Mesmo o filme sendo uma transposição fiel de um livro que baseia-se numa pesquisa real dos acontecimentos dos EUA na época da depressão pós 1929, existem diferenças substanciais na adaptação para o cinema. A mais notável das divergências está no desfecho da história. No romance, a família a princípio encontra condições mais favoráveis em um acampamento do governo, porém com salários de fome. No final da narrativa do filme está presente uma conclusão mais pessimista, embora com discursos moralizantes bastante inflamados, algo típico do cinema norte-americano.

Trechos bastante polêmicos do livro não foram transpostos para o filme, pelo caráter agressivo que poderiam aparentar em um meio audiovisual. Exemplificando, fora deixada de lado uma importante (e chocante) passagem contida no livro, onde um personagem miserável, arrasado e completamente faminto, sacia sua fome ao amamentar-se no seio de uma mulher desconhecida, uma recém-mãe – algo que provavelmente tenha sido presenciado por Steinbeck. Prova de que, em cinema, prevalece o ponto de vista sobre um determinado tema, ao invés de uma janela para a realidade -  curiosamente a moldura que é a marca do cinema de Ford.

Comentários (1)

Raul Rodrigues Fernandes | quarta-feira, 18 de Setembro de 2013 - 14:00

Ótima análise. Só não sei por que chama isso de crítica.

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