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Críticas

Cineplayers

Caminhando um pouco sobre a grossa camada de gelo.

8,0

Você se recorda daquela série de incêndios a igrejas católicas no início dos anos 90, na Noruega? Caso não tenha lembranças (por simplesmente não ter dado atenção ou por simplesmente não ter vivido a época, tanto faz), pergunte a alguém de sua família – seus pais, seus avós, talvez. Muitas pessoas certamente não iriam saber explicar as motivações ou quem foram os responsáveis por tais atos criminosos, mas a lembrança daquelas igrejas ardendo em chamas está guardada na mente de muitos. “Terroristas satânicos” ou algo parecido, sim, claro; certamente os que viveram aquele período também guardam consigo a expressão que a imprensa deu aos responsáveis por tais atos. Foi um episódio radical da década, movido por ideologias diversas que tocaram no confronto à religião (cristã) e ao imperialismo da cultura alheia - sobretudo dos EUA - sobre a Noruega, país essencialmente pagão. Quem está mais acostumado com gêneros mais extremos de música, tem em mente detalhes mais específicos daquele episódio: a trilha sonora daquele cenário de guerra era o Black Metal (como toca o Burzum: “War!”) e os responsáveis eram alguns dos membros da conhecida Inner Circle. São informações e informações, debates e debates sobre fatos.

O trabalho de Aaron Aites e Audrey Ewell é iniciado de forma genial: um fade-in que revela Fenriz (a principal cabeça por trás do Darkthrone, considerada a – como os headbangers chamam – “horda” que deu origem ao Black Metal típico da Noruega através de seu segundo álbum, “A Blaze in the Northern Sky”) se preparando para ser filmado em um ambiente relativamente escuro, enquanto um dos diretores pede para que chequem o enquadramento da câmera, até que o sinal verde é dado e um foco luminoso é aceso, fazendo com que Fenriz revele certo incômodo com a mudança repentina. É um momento interessante, pois além de destacar uma sensibilidade que praticamente inexiste no imaginário popular, dá um ar meio vampiresco, mítico àquela figura que ajudou a reinventar um conceito de ódio e rebelião na música. Antes de mais conversa, Até Que A Luz Nos Leve (Until the Light Takes Us, 2008) é um ótimo filme, principalmente porque evita cair na armadilha que tantas obras pertencentes ao seu gênero caem: não há aquele amontoado de depoimentos aleatórios, algo típico de maus documentários televisivos (até mesmo porque, como disse o finado Eduardo Coutinho lá em Cabra Marcado para Morrer [idem, 1985]: “Isso não é televisão. Parece com televisão, mas é Cinema!”). No entanto, o maior acerto é que a obra não se compromete por dizer uma história sobre um assunto específico, mas busca aplicar um olhar sobre o que já é de algum conhecimento popular – e mesmo que não o seja para alguns, a internet está aí, não precisamos de documentários para relatar piamente o que ocorreu.

É importante ressaltar que Até Que A Luz Nos Leve entra em perfeita sintonia com a temática abordada por ser uma obra, por si só, fria, de uma estranha atmosfera depressiva – aquele cenário branco da Noruega, que já desperta sintomas de loucura só de olhar para a tela, acompanhado de uma música minimalista de teor gótico (algo muito interessante, a escolha desse tema para a trilha; a dupla de diretores evita fazer uso do óbvio) dá uma sensação de desesperança; além, claro, dos próprios artistas entrevistados, conhecidos pelas suas obras macabras, estas que também se fazem presentes aqui. Os diretores conseguiram captar muito bem todo aquele mistério em torno da Inner Circle, movimento artístico (que tem tudo para ser um dos mais obscuros de toda a história da música, perdendo talvez apenas para a Les Legions Noires, da França) e ideológico formado por membros de hordas norueguesas de Black Metal. No tocante dos entrevistados, fica praticamente impossível não se surpreender com a humanidade existente neles; é paranormal o momento em que Varg Vikernes, responsável pelo pilar mais extremo, o Burzum, descreve a natureza das conversas tidas entre aquelas criaturas reunidas em um porão, com perguntas do tipo se fulano gosta mais de cereal matinal mergulhado no leite e molenga ou se prefere mais crocante. É no mínimo engraçado/irônico, também, quando Vikernes relata o suicídio de Dead, vocalista clássico do Mayhem, falando em determinado momento “Dead is dead”, e dá uma risadinha.

Há aqui o benefício de humanizar as “criaturas” retratadas, dando a elas a oportunidade de argumentar sobre alguns feitos, além daquela velha história de acusações (sobre X ter sido o responsável pelo fim do movimento por conta de atitudes inconsequentes etc), o que é até bom, pois garante o julgamento de uma pessoa mais conservadora e/ou pouco conhecedora dos reais pilares de tudo aquilo – sua música obscura, os demônios retratados em guturais e rostos pintados mais como uma forma crítica e metafórica de certo contexto etc. Existe um interesse em dar voz, oportunidade àqueles que são vistos como demônios sombrios por muitos; de fato são sombrios, mas ainda não perdem a humanidade dentro de si. Aliás, a própria humanidade já tem um quê de sombrio por si só, não é mesmo? Fenriz é retratado como a boa pessoa que sempre aparenta ser, Varg Vikernes – o assassino e incendiário - simpático, Abbath (do Immortal) gente fina, de humor. Ou seja, é uma obra que faz com que os que já estão habituados a esse extremo tipo artístico sintam-se em casa e faz com que os mais leigos adotem certa estranheza; no final das contas, todos saem ganhando – reflexões e reflexões sobre a natureza humana e seus conflitos, culminando em um grande mistério. Chega a ser meio doloroso, melancólico de ver aquelas pessoas falando sobre coisas passadas e a forma como suas vidas mudaram, bem como a de milhares de outras.

Tendo em vista que não há uma discussão sobre o antropophagismo inicial do Burzum, com algumas de suas letras em inglês, e uma discussão mais profunda sobre a tal “arte pura” da Noruega, Até Que A Luz Nos Leve ainda é extremamente defensável, pois não é um documentário sobre o Black Metal, ao menos não de forma direta; é um documentário sobre a tentativa de humanização de toda uma lenda, processo que, por consequência, passa a provocar identificações e discordâncias não menos humanas em quem o assiste. E Fenriz vai caminhando entre as árvores, afundando suas pernas na grossa camada de gelo.

Comentários (11)

Victor Ramos | quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2015 - 20:21

https://www.youtube.com/watch?v=1xEtWk8eo94

Ricardo Nascimento Bello e Silva | quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2015 - 20:30

Não sabia do canal, valeu. Quantos as músicas ouvi apenas um bocadinho do filosofem, as outras ouvi separadamente e claro aquele Sôl austan, Mâni vestan. Outra coisa que me chama muita atenção é a arte da capa, todas muito bem escolhidas/feitas como daquele álbum Fallen que é de uma pintura já existente.

Luis Felipe | sexta-feira, 27 de Fevereiro de 2015 - 12:18

Quando eu sugeri timidamente pra ele escrever sobre esse nem sabia que o pessoal ia gostar assim.

Rahe de Barros Toledo | sábado, 28 de Fevereiro de 2015 - 09:53

Falar de Burzum vem de imediato na minha mente albúns como Det Som Engang Var e Hvis Lyset Tar Oss, clássicos eternos do gênero.

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