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Críticas

Cineplayers

Os delírios de Hollywood.

6,5
O dia de trabalho de Eddie Mannix (Josh Brolin) não será fácil. Assim que chega aos estúdios Capitol Pictures, sua secretária já metralha os diversos problemas do dia: uma reunião com diversos líderes religiosos para aprovação do roteiro do novo épico bíblico intitulado Hail, Caesar; a escalação de um jovem astro de western para uma comédia romântica; a indesejada gravidez da estrela musical do estúdio; além das diversas reuniões marcadas com jornalistas sedentos por fofocas internas. Ao longo do dia, ele ainda terá de lidar com o desaparecimento súbito do astro Baird Whitlock, protagonista da maior produção em andamento da Capitol, e conhecido por sua vida de farras, atrasos, bebedeiras e mulheres. 

Através dessas andanças de Mannix pelos sets de seu estúdio que os irmãos Coen nos inserem de volta nesse universo dos bastidores do cinema da Velha Hollywood, nos anos 1950. Um misto de saudosismo e sátira, Ave, César! (Hail, César!, 2016) serve de oportunidade para que os aclamados cineastas transportem todo seu arsenal nonsense e bizarro para os cenários escapistas dos gêneros que dominavam a época do cinema americano e que hoje estão bem esquecidos, em especial o western, o musical e o épico bíblico. Nada escapa à lente afiada dos irmãos, desde a batalha de ego entre os astros, passando pela interferência religiosa à qual as produções eram submetidas (o que resulta na melhor cena), os diretores estrangeiros que procuravam imprimir o status de “filme de arte” em suas películas, os dribles da equipe técnica para maquiar a falta de talento de algumas estrelas, a disputa da mídia sensacionalista por um furo de reportagem (cara referência às lendárias jornalistas rivais Louella Parsons e Hedda Hopper), a paranóia comunista de caça às bruxas dentro dos estúdios (o que inclui uma hilária entidade denominada “O Futuro”), e no geral as engrenagens dessa máquina de sonhos bem lubrificada e funcional que era Hollywood. 

Claro, como sempre, os irmãos Coen extraem com precisão o que há de mais idiota em cada uma dessas situações, colocando George Clooney novamente na pele de um abobado que se deixa engolir pelo meio – nesse caso, um ator canastrão (um quê de Charlton Heston) raptado por roteiristas nem tão comunistas assim, que se reúnem em uma mansão com vista para o mar. Scarlett Johanson vive uma dessas estrelas símbolo de pureza e simpatia, mas que na vida real se porta como um caminhoneiro boca suja, enquanto Channing Tatum protagoniza um número musical hilário e bastante gay, à lá Gene Kelly, de marinheiros lamentando (ou seria comemorando?) a falta de anáguas a bordo. Na outra ponta temos um Alden Ehrenreich interpretando um galã de western que simplesmente não consegue atuar num filme de outro gênero, enervando um diretor europeu de trejeitos afetados vivido por Ralph Fiennes. 

O que há de bom nessa viagem nostálgica e de humor bem temperado é a habilidade técnica dos Coen, o que é quase um oásis no atual cinema americano de montagens desleixadas e edições porcas. Aqui tudo é muito rigoroso, incluindo a forma como assimila o mundo de figurinos, cenografias, maquiagem, fotografia das produções da Velha Hollywood, filmando inclusive no formato em celulóide de 35 mm, como era feito nos clássicos da época. Em cada set visitado pela câmera dos cineastas, o trabalho é contaminado pela mítica dos filmes dentro do filme que estão sendo gravados, nos presenteando com coreografias de balé aquático, perseguições a cavalo no Velho Oeste e bailes românticos em mansões suntuosas de uma comédia romântica. Cedo ou tarde, isso é assimilado de tal forma que o próprio Ave, César! é mergulhado no universo da época, como na cena em que Scarlett Johanson vai visitar o personagem de Jonah Hill, onde é recriada a ambientação de um autêntico filme noir, com meia-luz, fumaça de cigarros, femme fatale, e uma proposta indecente. 

Infelizmente, cada uma dessas boas ideias se sustenta isoladamente e o filme carece de um ritmo que unifique uma totalidade orgânica. Essa troca constante de cenários e gêneros acarreta um formato episódico e picotado, prejudicando o ritmo, que demora a engrenar e que depois perde rapidamente o fôlego. Fora que o filme em si parece apenas uma desculpa para os irmãos Coen brincarem com a mítica da época, mas sem ter nada de realmente novo pra mostrar que já não tivessem feito muito melhor, por exemplo, em Barton Fink - Delírios de Hollywood (Barton Fink, 1991), caindo apenas em um projeto bacana, mas sem dizer muito a que veio senão reafirmar o próprio cinema dos diretores, que hoje são consolidados o suficiente a ponto de receberem carta branca para a realização de um filme que, para o bem e para o mal, só alcançará de fato o público cinéfilo. Mas se é disso que se trata toda a investida, sejamos justos: Ave, César! é um manjar para qualquer fã do cinema americano clássico e uma ode ao poder da ilusão. 

Comentários (6)

Heitor Romero | segunda-feira, 18 de Abril de 2016 - 18:32

Obrigado, meninos 😁 eu esperava um pouco mais, mas mesmo em um filme menor, os Coen's estão acima da média.

Felipe Lima | terça-feira, 26 de Abril de 2016 - 12:02

Fazia tempo que uma crítica não me contemplava tanto haha. Dissesse exatamente tudo o que eu penso do filme. Ótima crítica, Heitor!

Lucas Moreira | quarta-feira, 21 de Setembro de 2016 - 14:02

"Fazia tempo que uma crítica não me contemplava tanto haha. Dissesse exatamente tudo o que eu penso do filme. Ótima crítica, Heitor!" (2)

Josiel Oliveira | quarta-feira, 30 de Maio de 2018 - 15:18

Negligenciei esse filme justamente pelas críticas negativas que eu vi por aqui, mas de repente resolvi assistir e tive uma agradável surpresa!
Achei um dos textos mais maduros e com mais conteúdo da carreira dos irmãos Coen, as esquetes são inteligentíssimas e trazem uma visão ao mesmo tempo crítica e nostálgica ao exaltar a beleza das suas contradições.
A Direção de Arte tá fodástica em vários números!
A única coisa discutível é a atuação de alguns atores, alguns personagens que ficaram caricatos demais.. mas não vejo isso como um grande defeito, vejo como algo até divertido.
O comentário mais interessante que eu vi por aqui foi do Vitor Perez, aqui abaixo via facebook.. realmente a questão do comunismo tem papel importante (o que eu achei muito foda!) e foi tratada com muito respeito às ideias.
Enfim.. ache um filme mais maduro e melhor do que boa parte dos clássicos adorados pelo grande público, como Big Lebowski, Raising Arizona, etc.

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