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Críticas

Cineplayers

Uma irresistível mistura de discussão artística, sentimentos profundos e uma boa putaria.

8,0

Três pontos a ressaltar sobre Azul É a Cor mais Quente (La Vie d’Adèle – Chapitres 1 et 2, 2013), do tunisiano radicado na França Abdellatif Kechiche, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, indicado ao prêmio de melhor filme europeu e um dos finalistas do César, o Oscar francês.

• É verdade a afirmação contida no filme de que não existe uma imagem masculina para a representação do prazer sexual. É a mulher que carrega essa simbologia desde a Antiguidade e povoa todas as grandes obras de arte (incluindo o cinema). Portanto, quando Emma pinta o corpo nu de Adèle, não se trata apenas de uma lésbica retratando a amada, mas a própria ideia de sensualidade sendo representada. Nem seria, como quer a discussão do filme, nem mesmo atração homossexual. Homens ejaculando são muito mais a captura de um momento, o orgasmo. Somente o corpo feminino é que conseguiria a prolongação eterna desse breve instante.

• Boa parte do escândalo do filme deu-se por conta das cenas de sexo, julgadas explícitas e muito longas (uma delas tem 6 minutos de duração e com closes “ginecológicas”). Mas o sexo entre as duas lindas é plenamente justificado: mesmo se intelectualmente as duas não estivessem ligadas, sexualmente elas se complementavam. Elas terminam por se separar, mas ambas admitem que, na cama, as duas funcionavam mesmo. Daí as futucadas fundas, sem dó, mostradas no filme, dedadas homéricas, tesouradas, velcros, cavalinhos e fluidos, fora o chupão que Adèle dá na mão da Emma no final. Reza a lenda de que para os homens é mais fácil relacionar-se com um ser apenas pelo lado carnal da coisa. Em Azul É a Cor mais Quente, as mulheres até se separam, mas sofrem do mesmíssimo mal.

• Outro achado do filme é a oposição entre os pintores austríacos Gustav Klimt e seu protegido,  Egon Schiele. Emma, a pintora, defende que as cores fortes, as flores e os motivos das telas de Klimt nada têm de decorativo, ele também obcecado pelo corpo da mulher e, por consequência, o erotismo. Interessante. Schiele, o angustiado, um dos pais do expressionismo, tradicionalmente associado aos distúrbios mentais e ao lado negro da força, é defendido no filme com também sendo um pintor erótico, que suas pinturas, mesmo amarguradas, não abriram mão por completo da sensualidade. Os quadros de Emma retratados no filme são uma espécie de mistura dos dois, ela numa “fase Schiele” no início, quando conhece Adèle, e depois numa “fase Klimt”, quando, já casada e com família, estabelecida, mostra alguma conformação com a vida. Bela sacada do filme.

La vie d’Adèle tem muitos problemas, e o pior é sua metragem excessiva. Exibido no Festival de Cannes com 3h13’, o diretor, após ser aconselhado pelos pares ilustres que o felicitaram pelo prêmio máximo que acabara de ganhar (o júri que lhe deu o prêmio era presidido por Steven Spielbergh), com muito custo reduziu a obra na versão internacional para 2h53’. Uma pena, pois longo assim sua carreira comercial ficou comprometida, além do que as angústias existenciais e as discussões fortes acabam sempre circundadas de exasperantes prolongações, que parecem infinitas, seguindo-se repetições inexplicáveis. O diretor provavelmente acha tudo o que filma fundamental e genial. Essa metragem exagerada dá um tom megalomaníaco que o filme não deveria ter, pois é intimista. Nunca a arrogância atrapalhou tanto um filme.

Desde que venceu a Palma de Ouro, o diretor foi apedrejado de todos os lados. Os técnicos fizeram protestos, dizendo-se derespeitados pelos diretor, um verdadeiro carrasco no set, que não só destratou a maioria como os demitiu e nem sequer os teria pago corretamente. A autora da graphic novel que originou o filme, Julie Maroh, ficou horrorizada com a mão pesada do diretor-roteirista na versão cinematográfica (“demonstração brutal, cirúrgica e fria do sexo dito lésbico, mais parece pornografia”, disse ela). Por fim as atrizes, Adèle Exarchopoulos e sobretudo Léa Seydoux, que o chamaram de tirano na turnê de divulgação do filme e juraram nunca mais trabalhar com ele (o filme teria outros capítulos, como indica no título original). Kechiche não deixou por menos e chamou Seydoux de mimada (modelo e celebridade, é filha de Henri Seydoux, o dono da rede de cinemas Pathé, a maior da França).

É triste dizer isso, mas o esforço valeu a pena. As atrizes também foram recompensadas como melhores atrizes em Cannes e elas estão magníficas. O curioso é que, enquanto as atrizes e o diretor recebiam os prêmios na Riviera Francesa, 150 mil pessoas marchavam em Paris contra o casamento gay, que foi aprovado na França e na Inglaterra em 2013 – na Tunísia, país natal do diretor, sodomia dá 3 anos de cadeia. Digamos que com um entorno desses, a coroação do filme fez-se óbvia.

Para finalizar, La vie d’Adèle é um filme para os fãs de Eric Rohmer. Tem a mesma base literária calcada no escritor francês Pierre de Marivaux, onde as personagens dão a impressão de jogar ou de se deixar levar pelo jogo da sedução – Rohmer era chamado de o Marivaux do cinema. Kechiche usou o romance inacabado La vie de Marianne como referência (até no título), enquanto Rohmer dizia ser influenciado por Jogos do Amor e do Acaso. Kechiche não tem a mesma concisão nem a humildade do mestre da Nouvelle Vague, mas com certeza é o seu herdeiro. Há uma certa gratuidade em Kechiche (todos choram sem parar, xingam os outros de palavrões, fazem insinuações grosseiras, sexo às mancheias – e a mãos cheias) que o distanciam de seu modelo, além da megalomania, como foi dito, totalmente fora do cinema de Rohmer. Mas a falação, o apetite pela discussão, a politesse francesa, os intelectuais perdidos e infelizes estão todos lá, de volta, para o deleite um tanto quanto travado dos que ainda acham que no cinema ainda dá sim para discutir arte, amor e sexo sem a música cafona do John Williams no fundo.

Comentários (11)

Edward Jagger DeLarge | quarta-feira, 12 de Março de 2014 - 10:39

Uma irresistível mistura de discussão artística, sentimentos profundos e uma boa putaria. [2]

Raphael da Silveira Leite Miguel | terça-feira, 18 de Março de 2014 - 23:43

Uma pena que provavelmente as atrizes talentosas não voltariam a filmar com o diretor pra uma possível sequência... 🙁

Roberta Cristina Machado | terça-feira, 22 de Abril de 2014 - 22:47

Não, eu também sou fã do Demétrius. Não concordo sempre, mas gosto da persona complexa que suas críticas indicam.
Concordo, o filme não precisava ser tão longo e \"o diretor acha genial tudo que filma\" traduz o que eu pensei e não sabia como expressar.

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