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Críticas

Cineplayers

A dureza do olhar feminino.

7,0

Bárbara (Barbara, 2012), último longa-metragem do diretor alemão Christian Petzold, pode nos chamar atenção, antes mesmo do contato com suas imagens e narrativa, por dois motivos. Em primeiro lugar, o roteiro é co-assinado por Harun Farocki, cineasta tcheco radicado na Alemanha, pouco conhecido do grande público, mas muito apreciado por cineastas, pesquisadores e acadêmicos. Farocki nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, em território ocupado pela Alemanha nazista. Ele estudou cinema em Berlim Oriental e sua vasta obra (de mais de 100 filmes para cinema e televisão) está permeada pela busca da politização do olhar. Não por acaso, um de seus temas preferidos é a guerra. Petzold foi seu aluno na Academia de Cinema de Berlim e desde então buscou em Farocki sugestões criativas para seus projetos. Por outro lado, Barbara levou o Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim, atraindo para si a atenção de público e crítica. Isso talvez explique o interesse pelo longa e por que muitas críticas já foram publicadas a seu respeito. Em texto da Revista Cinética, o crítico Filipe Furtado chega a conferir-lhe o status de um “grande filme”.

Visto que já existe muita elaboração crítica a respeito do filme, vou procurar me ater a aspectos que foram pouco ou nada abordados em outros textos, ou pelo menos por um viés diferente. Assisti duas vezes ao filme e, na primeira, o que me saltou aos olhos (e ouvidos) foi a perfeição da imagem e do som. Uma câmera de altíssima definição nos oferece uma imagem bela e límpida, composta por cores certamente calculadas: amarelo, verde, marrom, azul e, aqui e ali, pitadas de vermelho. Os cenários e figurinos são predominantemente pastéis, e traduzem bem a monotonia de uma Alemanha comunista. Há, porém, a vivacidade da natureza nas paisagens verdes do interior, num verão ensolarado ainda que pouco quente e vibrante. Embora a história se desenrole durante o verão, o vento e o frio atravessam os lugares e os corpos. Há uma tensão presente nas pessoas – e sobretudo na protagonista Barbara – justificada pela paranoia da delação, pela constante vigilância de um Estado policial autoritário, vigilância essa exercida tanto pela polícia quanto pela sociedade civil. Todos são potenciais infratores, todos são potenciais delatores. A literatura de Milan Kundera descreve bem como a política comunista adentrava as relações sociais e o estado de espírito dos indivíduos: há uma desconfiança e uma dureza na forma de se relacionar com o mundo e as pessoas.

Se há um domínio da fotografia, há também um minucioso trabalho de som – que dá a impressão de ser quase todo pós-produzido. Os diálogos são perfeitamente audíveis, os barulhos habilmente dispostos, os volumes balanceados. Nada escapa, não há pontos de fuga. Tudo parece sujeito a um controle absoluto que, a princípio, me causou incômodo, uma sensação de falta de veracidade. Revendo o filme, compreendi melhor certas sutilezas dos diálogos e da trajetória de Barbara, o que me envolveu mais com a personagem e sua história. Mas me parece ainda existir algo mal resolvido nessa perfeição controlada, algo que mereceria um olhar mais detido e cuidadoso. A estratégia de abordar um estado de controle por meio de uma estética de controle não é isenta de uma contradição passível de questionamentos políticos.

Ao longo da trama, acompanhamos as tentativas de aproximação do diretor do hospital André Reiser e as sucessivas recusas de Barbara. Assim como André procura desvelar os mistérios dessa mulher que não se deixa acessar, nós também vamos entendendo de forma muito lacunar quem é ela, quais seus desejos e motivações. Não sabemos ao certo por que ela está ali – além de algumas informações logo no início, em que o policial que a monitora diz a André que a prisão desintegrou suas relações de amizade. Sentimos seu incômodo, mas não suas angústias. Quase não vemos seu sorriso e não ouvimos seu pranto. No entanto, com o passar do tempo, vamos nos aproximando e compreendendo melhor as ambiguidades de Barbara (tanto nós, espectadores, como o personagem de André). A intimidade do encontro com seu namorado Jörg, que, num primeiro momento, só avistamos de longe, é filmada bem de perto no quarto de hotel. Só nos é permitido acompanhar a personagem durante a inspeção corporal a que é submetida na segunda vez em que sua casa é revistada. Aos poucos é que somos convidados a adentrar seus momentos de privacidade, e aos poucos Barbara vai se tornando mais espontânea e sedutora.

Em duas cenas, Barbara se defronta com questões que não sabe responder. Primeiro, no bosque, quando Jörg pergunta “o que mais ela quer”. Ele se refere a produtos que poderia trazer para ela de Berlim Ocidental, mas podemos ampliar o escopo dessa pergunta: até aquele ponto, não sabemos de fato o que ela deseja, que vida ela projeta, quais são seus sonhos e prioridades. O que vamos descobrindo é sua paixão e dedicação extremas pelo trabalho. Ela tem um raro cuidado com seus pacientes e por eles nutre um carinho maternal. Seu profissionalismo e esmero rapidamente a destacam dentro da equipe do hospital e assim ela ganha o respeito do médico supervisor. Mais do que sua fuga, Jörg revela que também planejou uma vida para ela: uma vida de dona-de-casa. Ele garante que Barbara não precisará mais trabalhar depois que sair da Alemanha Oriental, o seu dinheiro será suficiente para os dois. Assim, vamos percebendo que, além da opressão de um estado autoritário, existe a opressão de uma cultura patriarcal e machista – que se confirma na história contada por Angie, namorada do jovem Mario, que após uma tentativa de suicídio ficou internado no hospital aos cuidados de André e Barbara. Angie conta que havia viajado e, numa festa, dançou com dois cubanos. Seu namorado foi avisado imediatamente por um amigo em comum e se desesperou a tal ponto que tomou solvente e pulou do 3o andar. Instaura-se portanto um conflito e, até o último momento, não sabemos se Barbara irá seguir com os planos da fuga. Pois, ainda que privada de seus direitos e sua privacidade, resta-lhe ali alguma liberdade: a possibilidade de realização profissional e de começar um novo romance.

Já no quarto de hotel, Barbara conhece a ingênua Stefi. Essa lhe mostra o pingente que ganhou do “namorado”, que disse que se casará com ela e a levará para a Alemanha Ocidental. Barbara olha para Stefi com pesar, diante do deslumbramento e ilusão da jovem. Em alguma medida, ela tristemente se reconhece nos seus planos de fuga e casamento. O diálogo entre as duas termina com a pergunta de Stefi: “você sabe o que tem a fazer?”. A dúvida irá persistir até o desfecho do filme, quando Barbara se vê diante de uma encruzilhada e finalmente toma sua decisão. Todavia, essa escolha não é de todo radical, pois a médica cede seu lugar para sua paciente Stella, uma jovem grávida que está detida pelo Estado num campo de concentração comunista, em Torgau. Stella deseja fugir, mas mais do que isso, deseja ter o filho que carrega, e fora dali (em certo ponto, entendemos que as autoridades forçariam um aborto caso descobrissem a gravidez). Ao contrário da história de Huckleberry Finn, que Barbara lê para Stella enquanto essa se recupera de uma meningite virótica, só há lugar para uma pessoa fugir. Resta ao espectador pesar o que houve de renúncia e de conquista nessa escolha. O filme, ainda que preservando alguma sutileza, perde em ambiguidade quando termina com um apaziguador plano e contra-plano de André e Barbara, que sorriem um para o outro.

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