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Críticas

Cineplayers

Uma narrativa de destroços.

9,0

O cinema da diretora Claire Denis costuma ser permeado por uma grande afetividade da câmera com os personagens, seus corpos e desejos. Troca de olhares, breves toques, mãos que deslizam são os gestos que compõem os elementos de interesse no cinema da cineasta - ao menos, no que essa tem de mais singular. Nesse sentido, Bastardos (Les Salauds, 2013) é um filme que aparece como um passo fora da zona de conforto da diretora porque se constroi sem esses pontos de apoio de cumplicidade entre câmera e personagens. Como o título denúncia o centro da trama está nos canalhas, nos sujos, nos desgraçados.

Vamos adentrando aos poucos dentro do universo de sordidez do filme. De começo temos um suicídio, uma viúva falida e desestabilizada (Sandra), a filha adolescente transtornada (Justine) e o irmão (Marco), que chega para socorrer a família. No outro núcleo familiar, temos a estranha união de Raphaëlle com Edouard - pouco convencional visto que esse visita raramente Raphaëlle e o filho do casal, Joseph. Sem pressa em desenrolar a trama, a diretora vai aos poucos revelando os nós que unem essas duas famílias: o suicídio que inicia a narrativa está intrinsecamente ligado a uma relação de dinheiro, sexo e poder que envolvia Edouard, Justine e seu pai. Mas, da mesma forma que  Marco, isso é algo que só conseguiremos deduzir aos poucos - visto que Sandra não tem a coragem de revelar tudo o que aconteceu ao seu irmão e Justine está completamente destruída. Sem saber ao certo as suas motivações e o seu plano de ação, Marco se aproxima de Raphaëlle, na tentativa de buscar alguma forma de vingança.

Mas explicar a narrativa cronologicamente não é algo que faça sentido para se pensar Os Bastardos. A questão que perpassa o filme é como contar a história de um desejo terrível e as suas consequências desastrosas dentro de uma família, algo sobre o qual os próprios personagens parecem não ter a capacidade de refletir. Como falar cobre algo que é impalpável? E, de certa forma, esse não é um tema que interessa a diretora apenas nesse filme. Em 35 Doses de Rum (35 Rhums), mais do que a ação que transcorre no enredo, o grande assunto do filme parece ser a relação de desejo/afeto quase incestuosa entre pai e filha: as ações, as decisões e o desenrolar da história vem todos da tentativa de resolução desse impasse dos personagens que desejam o indesejável e tentam contornar uma situação que ainda não existe (e poderia vir a nunca existir) antes que essa aconteça. É um filme motivado por algo que nunca de fato acontece e sobre os afetos criados em torno desse desejo.

Em Bastardos, Denis nos situa no pós-apocalipse familiar. Algo terrível já aconteceu. A diretora vai nos dando então pedaços da narrativa que vão se articulando aos poucos. A repetição e a inserção de cenas não lineares criam esse clima de uma história que nunca se conta de forma completa - que não pode recuperar o seu todo, o seu sentido absoluto, pois não é possível remontar o acontecimento de forma plena. Temos destroços, assombrações. Por exemplo, quando Justine anda desorientada nua de noite em uma rua deserta, cena retomada em vários momentos da narrativa sem necessariamente se encaixar cronologicamente em lugar algum. Ou o enigmático plano da bicicleta de Joseph caída em uma mata encontrada por soldados e por Raphaëlle desesperada. Trata-se de uma projeção, de um sonho, de um flashforward? Não é possível saber, podemos dizer que é apenas mais uma peça destroçada dessa história.

No entanto, Claire Denis recorre a uma última imagem, com textura de uma câmera de segurança videográfica. O recurso da câmera de vigilância já havia aparecido no filme para fazer Marco ver algo que ele ainda não havia conseguido entender das relações entre os personagens. Mas, nessa primeira inserção temos apenas rostos e a dedução do que se passou. Na sequência final, a diretora mostra aquilo que o filme contorna. Nesse sentido, a mudança na textura da imagem, o recurso aos pixels não nos parece acidental. Dentro dos destroços que compõem o filme, essas imagens são de natureza distinta, de outra origem e, por isso, nunca serão capazes de se articular com os demais pedaços da narrativa para formar um todo, um sentido completo ou uma explicação. Talvez, Denis recorra ao vídeo para afirmar que o cinema não é capaz de mostrar tudo, e, que às vezes, é preciso sair dele para ver além. Mas também (e principalmente) que ver além, que ver tudo, pode não ser uma experiência prazerosa.

Comentários (7)

Lucas Maciel | segunda-feira, 30 de Setembro de 2013 - 09:00

Altíssimas expectativas!

Patrick Corrêa | segunda-feira, 30 de Setembro de 2013 - 17:01

Claire Denis é sempre instigante.
Ótimo filme.

Lucas do Carmo | segunda-feira, 30 de Setembro de 2013 - 17:05

Nossa.......... que cheirinho de obra-prima. Claire fucking Denis.

Lucas Maciel | quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013 - 17:31

Bela crítica para (mais um) filmaço de Claire Denis.

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