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Críticas

Cineplayers

O ícone no espelho.

8,0

A questão que rege a natureza do herói é o seu poder enquanto entidade, enquanto símbolo. Grandes filmes baseados em historias em quadrinhos, como Batman Begins e o Homem-Aranha de Sam Raimi, são bem sucedidos porque entendem, principalmente, o sobrenatural que envolve a imagem de seus protagonistas. É uma camada simples de discussão; evidente que personagens que usam roupas chamativas e têm identidades secretas brincam com a forma na qual se apresentam ao mundo. O que aprofunda a temática é aumentá-la em escopo e escala.

Batguano, o segundo longa de Tavinho Teixeira, e provavelmente a mais curiosa adaptação do Homem-Morcego feito para o Cinema, usa de um ritmo cômico e da caricatura que há nos grandes símbolos pop para construir uma reflexão ampla nos dois campos. A escala é abrangente, homenageia a Paramount e as graphic novels de Warren Ellis, coloca Andy Warhol e Caveira Vermelha na mesma mesa; e o escopo é denso, mergulha na verdade dos arquétipos para montar um panorama iconoclasta que vai além do homoafetivo recorrente atribuído a Batman e Robin.

O que começa com caráter de manifesto - o sexo explícito, a voz do próprio Tavinho invadindo a tela com imagens do mundo de hoje e clamando o viver bem nessa "era da escuridão" - evolui como observação completa do construir (e, claro, o desconstruir) de um símbolo. Já que os ícones têm tendência à performance por essência, é muito interessante a apresentação de cenas d'O Homem Elefante de Lynch para associá-los com a Dupla Dinâmica: uma personalidade deve ter noção de seu espaço como atuante na sociedade, e no caso dos ícones a diferença é o maior potencial de atrair os olhares do público. O telefone que nunca toca é um recurso dramático eficaz, nesse sentido, porque representa essa eterna busca pelo retorno do público que os heróis esquecidos agora clamam.

Enquanto esperam, a construção simbólica se estabelece para apontar novos olhares ao já conhecido (e as vezes saturado) mito do Homem-Morcego. O espelho de Batman, com seus bonecos ali, é oriundo de um camarim; os autógrafos nas imagens sessentistas da dupla são substituídos pelo fogo, um sinal da decadência; as saídas com o Menino-Prodígio se restringem a uma projeção de imagens para causar uma sensação de movimento, os heróis interagindo com um público que na maioria das vezes não os ouvem, tudo ao som da mais fina balada francesa. Esse condensar de diferentes culturas, aliás, abre um patamar novo de exemplos na cultura pop.

A presença do minotauro, nunca transformada em texto pelos heróis, é só um dos exemplares que estão ali pelo o que representam no imaginário. As referências então se estendem para além dos super-heróis, e não por acaso Robin faz sua performance de Ney Matogrosso (a quem o filme é dedicado) em certo momento. Para o diretor, esse jogo de performances, que no caso de Matogrosso tem natural caráter libertário, é uma boa base para ensaiar o que há de místico na influência dos símbolos no público. De referências culturais Batguano está cheio, e o roteiro se diverte bastante ao deslocá-los do lugar de conforto.

Ao mesmo tempo em que é esperto ao suprimir tudo o que foge à temática principal (a contextualização pela TV é brilhante pela funcionalidade), o roteiro de Teixeira não escapa de certos didatismos, tão deslocados em uma estrutura formada pela coesão de elipses espaçadas. Compara os deuses aos herois textualmente, quando a Lua já os transformava em tais, uma concessão desnecessária que periga se repetir na divagação sobre a arte feita no filme caseiro da dupla. No entanto, na mesma sequência Teixeira adere a psicanálise à balança temática através da figura da mancha de Rorschach na parede (também transformada em cultura pop por Alan Moore, vale lembrar), o que revela um instigante pano de fundo para estudo de personagem sob a camada principal.

Mesmo ambicioso, Batguano é muito eficaz ao não subverter os questionamentos propostos. Não obstante, apresenta na concisão uma ferramenta forte para estabelecer ideias inquietas, sem que para isso se perca dramaturgia. Ao construir e demolir os ícones, Tavinho Teixeira não se furta de testá-los mais profundamente, no próprio espaço cênico; já que Robin é sempre o assistente esquecido, o seu poder simbólico se prova na tristeza de Batman. Uma solução singular, porque humaniza os ícones da maneira mais naturalista possível: atribuindo a crença deles em representações ainda maiores. Em um filme que raramente versa sobre religião, é com caráter quase farsesco que nesse clímax Deus seja chamado; é o clamar por um ícone igual a todos apresentados ao longo da metragem.

E essa complexidade que reside nos arquétipos vai além do operático, uma vez que o arco dramático se encerra com um acontecimento mais fiel aos personagens que à discussão temática sozinha. Batman e Robin são corpos no mundo, sobretudo, e isso está acima de qualquer idealização; quando a música acaba, a cena prossegue muda.

Comentários (4)

Landerson DSP | terça-feira, 25 de Novembro de 2014 - 19:48

Quero muito ver esse filme.

Cristian Oliveira Bruno | quarta-feira, 26 de Novembro de 2014 - 14:48

Pelo texto, o filme parece muito bom mesmo. Ainda que não seja meu estilo, vou assisti-lo, sem dúvidas.

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