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Críticas

Cineplayers

Os que partem e os que ficam.

9,0
Tem um abismo de 8 anos entre Riscado e Benzinho, o tempo que Gustavo Pizzi levou entre seus dois projetos. A julgar pelos dois filmes, precisamos cobrar dele uma presença maior no mercado, e que o próximo longa não demore tanto a aportar por aqui. Alguma coisa mudou entre seus dois filmes - o casamento com sua parceira, roteirista e protagonista Karine Telles agora é 'apenas' uma usina de ideias coletiva. Ambos mantêm intacto no entanto o enlace profissional, e o novo longa os mostra mais maduros e sofisticados, talvez menos crus, mas com certeza mais humanos, a julgar pelo olhar carinhoso dispensado a cada fagulha apresentada no novo filme.

O que provavelmente foi trazido pelo casamento e se mantém aqui é a compreensão que ambos têm de seus ofícios, e um do outro. Pizzi sabe como filmar Karine, ela sabe o que ele quer a cada close; projeto familiar em todos os sentidos, Benzinho traz na tela a família que ambos construíram, seus afetos, sua sensibilidade e seu entendimento do núcleo familiar, um através do olhar do outro, de como reagir a cada inflexão proposta pelo parceiro. Seus filhos estão em cena, seu sobrinho, seus amigos; é uma grande família artística que compreende os conceitos que o roteiro de ambos propõe, e que parece fluir com a naturalidade pretendida.

Benzinho não faz parte de um molde de cinema a ser copiado ou que vem no rastro de uma demanda, apesar de não-propositalmente servir a uma fatia do público (adultos de classe média do circuito intelectualizado das capitais, embora não devesse ser tratado assim pelo mercado - o filme é universal e deveria estar ao alcance de todas as classes). Sua leveza e doçura parecem cuidar de cada espectador, provém um senso de realidade muito raro no cinema hoje e acaba criando uma casca de pegada humanista sem precisar apelar a palavras de ordem ou panfletos; o filme de Pizzi e Karine tem a tessitura de um material raro mesmo dentro de uma escola filmica mais coloquial.

O filme coloca debaixo de um mesmo teto oito personagens, uma grande família que acaba de receber agregados também familiares. Todos recebem a mesma notícia festiva: o filho mais velho acaba de receber uma proposta para jogar handebol na Alemanha. A felicidade só não é estampada nos olhos de Irene, sua mãe. Mas também é complexo dizer que Irene está triste. Um dos pontos positivos de Benzinho é mostrar os dois lados de todos os seus personagens, até um que só aparece realmente por duas vezes. Criar uma nuvem em cima daquela família extremamente solar é a proposta do filme, mas mesmo essa nuvem não pode ser chamada de negativa. 85% passado em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, chove muito no filme, cuja família mora provisoriamente numa casa que literalmente pode desabar. As chaves metafóricas não tentam realçar sutilezas, mas sim permitir raros momentos explícitos a um filme que não é nada óbvio do ponto de vista emocional. Costurando as pontas entre a clareza e a sugestão, o roteiro de Pizzi e Karine é sucinto e preciso.

Tecnicamente Benzinho é um filme que parece o tempo todo disfarçar sua riqueza. A montagem de Lívia Serpa cria laços narrativos entre momentos distintos da trama, remetendo e cruzando passagens aparentemente desconectadas, além de fortalecer o sensível ritmo do material. O trabalho de trilha sonora de Maximiliano Silveira e Dany Roland é um achado, um leque de sutilezas em trabalho conjunto com a captação e reprodução da banda sonora de inegável frescor para o cinema brasileiro, desacostumado a elaboração dessa atividade em camadas. A direção de arte é um capítulo a parte, reproduz em detalhes a atmosfera daquele núcleo através das muitos objetos e paredes que os compõem, umas desabando, outras nascendo, umas reais e outras compostas de poesia.

Apesar do impecável desenho de personagens, todos muito defendidos com talento, carisma e naturalidade (a personagem de Adriana Esteves, a irmã agregada por força de trágicas circunstâncias, pode e deve incomodar alguns pela sua funcionalidade - pra mim justificada, e exemplarmente defendida pela bela atriz que Adriana é), mais uma vez Pizzi constrói um espetáculo para Karine brilhar. Uma mulher que é construída sob muitas sombras alheias, mas que também quer ser unitária, e ser total. E nos cabe perguntar mais uma vez sobre sua presença não ser mais solicitada, tendo em vista o manancial de emoções que passa pelo seu rosto a cada take. São muitos. E ainda bem que são, porque Karine não os repete. A cada nova sequência, o filme se abre de novos sentimentos graças a seu rosto, em explosão de cores e afetos. 

Pizzi é muito feliz na construção de sua saga de curta duração, tudo acontece no período de 20 dias. Mas o que fica na memória são os anos ao lado daquelas pessoas, tão multifacetadas que quase conseguimos adivinhar todo seu percurso antes e depois da duração do longa. Como a construção da partida é tão importante quanto a construção da chegada. Como algumas flores precisam ser colhidas para que outras possam enfim nascer, como é simbolizado na belíssima sequência final. Tristeza e alegria, e tristeza as vezes é alegria. No rosto de Irene, mais uma vez, mil sentimentos, e no meio de tantas dores e amores, o surgimento de um totalmente novo que o filme elabora tão bem: o amor próprio.

Comentários (1)

Alexandre Koball | quarta-feira, 29 de Agosto de 2018 - 08:18

O meu nacional mais aguardado no momento.

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