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Críticas

Cineplayers

A imagem como captura e o olhar como linha de fuga no documentário.

9,0

Em sua cena inicial o documentário Bestiário (Bestiaire, 2012) nos mostra planos de diversos estudantes que desenham um objeto que a princípio não vemos. Pelas formas apresentadas podemos adivinhar que se trata de um cavalo, e pela disposição dos corpos no espaço podemos supor que a situação se refere a algum exercício de aula de arte. Até que finalmente, apresenta-se o contracampo da cena: no centro da sala, vemos uma espécie de miniatura do animal e a sua volta os artistas reproduzem sua imagem em pranchetas e telas.  

Esse preâmbulo define de forma categórica do que tratará o filme: da necessidade humana de representação da natureza (sobretudo, dos outros animais); dessa representação como uma forma de captura e poder; e do cinema como a captura máxima, mas também do campo documental como um local de resistência na imagem. E a operação de Denis Côté no filme para colocar essas questões é muito simples: o diretor filma obcecadamente diversos bichos (quase sempre em cativeiros de zoológicos ou parques). 

Dos desenhos pré-históricos nas cavernas de mamíferos imensos a um dos gestos fundadores do cinema como conceito, as fotografias em sequência dos galopes de cavalo de Muybridge, fato é que a representação da fauna sempre fez parte da estratégia humana de domínio sobre a natureza (seja no campo da ciência, da arte ou da religião). Esse produzir imagens do mundo funciona como forma de se colocar fora dele (ainda que parcialmente). É a esse imaginário que o filme nos remete ao fixar os demorados planos de búfalos, zebras, hienas, rinocerontes...  

Procedimento paciente e vagaroso, mas que ainda assim instala uma tensão narrativa ao vermos ser explicitada cada vez mais a condição de prisioneiros dos animais. A câmera de Côté está quase sempre apartada por alguma grade, portão, cerca – algo que marque a distância irremediável do humano ao não-humano. E a medida que o filma avança somos confrontados de forma cada vez mais direta com cenas de desespero diante desse enjaulamento. Se a imagem como captura parece não ser uma ameaça aos animais, a privação do próprio corpo e do espaço é violentamente refutada.

Por fim, após zoológicos, safares, parques e etc., o filme nos lança na captura última: o empalhamento. Nesse momento, a metáfora com o cinema como forma de apreensão se expande para uma de suas maiores fronteiras: a morte. Tanto o empalhamento quanto o cinema mantêm vivo como imagem pulsante aquilo que já não existe no mundo (no caso do cinema, que em breve não existirá). São as formas últimas de captura, que já não se adequam aos limites do natural – nem tudo precisa morrer, é o que nos dizem as duas operações. 

Há, porém, para além do domínio físico, científico, artístico dos seres humanos sobre os animais, algo que resiste a tudo isso. Se uma das questões centrais do documentário nunca deixou de ser como filmar o “outro” (como lhe dar voz, como agir eticamente, etc.), esse outro animal provoca um curto-circuito nas imagens. Porque nas imagens dos animais de Côté há uma antropomorfização evidente dos corpos, gestos, olhares – ou talvez fosse mais preciso falar em uma universalização da produção de imagem para além dos parâmetros humanos. Filma-se o búfalo como búfalo e não como a imagem do animal que já se tem no imaginário. A diferença é sutil, mas a escolha de enquadramentos e de tempos do filme subvertem esse olhar sobre o animal como algo que pertence ao homem. 

Assim, por prisioneiros que sejam, os bichos do filme não se submetem às imagens. Resistência feita no simples ato de apresentar-se nos planos seu existir cotidiano que permanece indiferente à presença da câmera – aqui os personagens não entram na atuação pró-fílmica típica dos documentários. Mas também, em um não aderir que transparece nos longos olhares diretos e fixos dos animais para a câmera – talvez buscando o olhar daquele que a operava, mas que de fato confronta o nosso de espectador. Olhares cortantes, de igual para igual  - e até com certa vantagem para o mundo animal, ampliado pela projeção na tela grande. Se o cinema, sobretudo o documentário, é uma arte de captura e dominação, Bestiário felizmente nos lembra que nas imagens sempre há algo que escapa.

Comentários (3)

Daniel Dalpizzolo | terça-feira, 16 de Outubro de 2012 - 21:29

se o filme tiver metade da qualidade do texto da kênia já vai ser excelente.

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