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Críticas

Cineplayers

Antonioni vai à Inglaterra.

9,5
Primeiro filme de Antonini fora da Itália, Blow-Up - Depois Daquele Beijo foi realizado na Inglaterra na época da Swingin’ London, quando a capital do país era também a capital cultural do mundo pela reunião de uma série de músicos, cineastas, fotógrafos, poetas e escritores que agitavam a vida da cidade. Uma época de experimentação e descoberta, quando uma nova geração de jovens descobria seus valores e preferências morais, estéticas, sexuais e filosóficas. 

Já com 54 anos, Antonioni não era mais um desses jovens - na verdade havia acabado de atingir sua plenitude artística da Itália após a chamada Trilogia da Incomunicabilidade (formado por A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962)) e a obra-prima O Deserto Vermelho (1964), com a carreira iniciada ainda no regime fascista de Mussolini. Seu estilo foi consagrado nesses quatro filmes, após passar a década de cinquenta angariando reconhecimento para si ao enfocar a vida solitária e desesperada da burguesia que ascendeu no novo regime democrático italiano que tentava esquecer seu passado totalitário. Já entrava desde então em contraste com a preferência de seus companheiros neorrealistas, que enfocaram por muito tempo as dificuldades e tragédias da classe operária. 

Quando uma nova burguesia surge, diferente daquela mais tradicional e conservadora que primeiro alcançou a idade adulta no Pós Guerra, na segunda metade da década de 40 e início da de cinquenta, o já maduro Antonioni então vai observá-la. O italiano foi um dos principais responsáveis por trazer ao cinema junto com outros da geração neorrealista um novo tipo de dramaturgia, aquela que nega as noções de início, meio e fim e a necessidade por reviravoltas típicas do cinema mais narrativo e industrial. Esse tipo de narração pertencia a um outro mundo. A saga moralizante de heróis prodigiosos soava ultrapassada para as novas gerações. 

Depois de acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial e as inúmeras mortes feitas exatamente pelas guerras entre ideologias conflitantes, o mundo perdeu o sentido. Foi de onde veio o fortalecimento de correntes filosóficas como as de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, os romances de Albert Camus, o noveau roman e o acontecimento dos novos cinemas, que rejeitavam então essas histórias como ideológicas e propagandistas, não questionadoras e não criadoras de sentido, apenas afirmativas do mesmo, em sua relação de montagem causal (A seguido de B logo C). Os filmes agora eram blocos sensoriais e os seus personagens eram nômades, vagando por mundo onde não havia princípio nem fim e que os cortes eram substituídos pela movimentação de câmera, pela composição do quadro, pela dilatação do tempo em longos planos-sequência. A construção dramatúrgica, então, era deliberadamente aberta e seus personagens tinham conflitos pouco óbvios, apesar de sempre angustiantes. 

Blow Up - Depois Daquele Beijo, seu debut na carreira internacional, traz um diálogo interessante com o cinema industrial, ao contar a história do fotógrafo Thomas (interpretado por David Hemmings), um fotógrafo de moda que passa seus dias entre trabalho  e sexo, em um rotina que logo perde seu encanto e tende a se tornar morosa e repetitiva. Thomas, inspirado no fotógrafo da vida real David Bailey, que lançou ícones como Jean Shrimpton e Twiggy, está insatisfeito com o trabalho, o que leva a abandonar o trabalho um dia, após ter que aturar a insistência de duas jovens em serem fotografadas para andar em um parque, onde tira fotos de um casal que se beija. A mulher, interpretada por Vanessa Redgrave, está furiosa de ser fotografada e exige o filme de volta, o que faz com que ele a engane, entregando um diferente filme, e fique com o mesmo para si. O que ele não contava é, justamente, o que as revelações e as ampliações iriam descortinar ante seus olhos.

Há um homem morto em um dos arbustos, impressão tornada verdade quando o mesmo volta lá à noite e encontra o corpo visto antes em filme. Essa é a primeira vez que Thomas estará durante todo o filme empolgado com alguma coisa, o que leva a, na sua visão, flertar com o perigo, descobrindo que os seus negativos sumiram e logo passando a seguir a mulher que fotografou mais cedo.

O filme é um comentário melancólico sobre o vazio existencial repleto de hedonismo daquela geração, que tanto quis se afastar dos adultos que a precederam apenas para dar a volta completa e encontrar a si mesma como alienada em sua sofisticada rebeldia sexual e chapada. Ou seja, o contexto é específico mas a temática é universal. Thomas mesmo enquanto ajuda a fundamentar o imaginário popular de uma geração não acredita lá tanto na mesma. Faz sexo com as modelos que o procuram de uma maneira que já perdeu a excitação há muito tempo e passou a ser mecânica. Objetifica suas relações, reduzindo-as a nada mais do que fotografia e sexo, e ainda assim não fica satisfeito.

O que lhe dá esperança de satisfação, em uma perseguição por um corpo num parque e um assassino misterioso, é o flerte discreto e bem humorado de Antonioni com o cinema clássico narrativo, pois propõe um incidente incitante ao protagonista e ao espectador de forma a conseguir um “gancho” para a história, lançando a mão de clichês do suspense para criar uma tapeçaria do vazio, onde temos que cair no clichê para nos surpreender, indignar e revoltar no final das contas, pois não há clichê, norte ou horizonte nenhum a ser seguido

Blow-Up - Depois Daquele Beijo é uma experiência que se pretende frustante, de fazer o espectador crer que está assistindo uma história delimitada, apenas para destituir tudo de sentido depois, o que leva ao que crê no mundo com propósito de se desesperar. Thomas tem de enfrentar isso desde a primeira cena: sua vida é uma mentira que ele mesmo construiu, e uma mentira com a qual ele mesmo sempre irá se frustrar.

Recheado de inúmeras passagens marcantes - as sessões de fotografia com Veruschka e Jane Birkin, o show selvagem dos Yarbirds que termina em amplificadores queimados e instrumentos quebrados (cuja força descontrolada e inglesa entram em conflito com o jazz livre e contemporâneo do americano Herbie Hancock, trilha sonora incidental do filme) e lançados ao público e o tênis dos mímicos, a sequência mais marcante mesmo de Blow Up é aquela onde Thomas é David Bailey mas também é Antonioni indo ao cinema de gênero - onde o protagonista amplia a foto original e então amplia a ampliação e assim por diante até ver uma situação comum se transformar em fantástica, mas ao mesmo tempo sendo impossível o que era a tônica da mídia original de onde saiu o filme, o conto “As Babas do Diabo” de Julio Cortázar, que experimentava radicalmente com a narração pós-moderna e retirando a certeza da narrativa concreta, onde o personagem principal, Michel, narra em primeira pessoa e é narrado em terceira, flutuando entre a realidade e a irrealidade, o fato e o não-fato, e a busca pela concretude do mesmo. 

A ampliação da foto é uma pequena narrativa de suspense e mistério que causa assim como o gênero referenciado curiosidade e apreensão, mas ao mesmo tempo o critica porque alfineta a necessidade burguesa daquela sociedade de sempre estar se entretendo com algo fantástico, observando outros mundos sem precisar julgar a si mesmo, como um perfeito voyeur. Quando não há nada para se ver, na verdade, quando o filme na verdade não passa de uma mímica muito bem realizada e interpretada, a história de gênero inofensiva e pouco questionadora passa a ser então na verdade um avatar que representa a necessidade por escape da realidade desesperadora. O cadáver na foto de Thomas é a sua chance para escapar da indústria da moda e do sexo insatisfatório; é o seu maior entretenimento, é a sua narrativa de crime a qual ele irá revelar, como bom fotógrafo que é.

O blow-up, que podemos traduzir como ampliação de uma imagem, pretende metaforizar a condição que Antonioni estava olhando sim com carinho para a condição humana daquele juventude com suas questões mas também que, quando mais a câmera se aproximasse, cada vez mais aquelas pessoas teriam que lidar com questões fundamentalmente desconfortáveis, como a alienação que construíram para viver suas plácidas vidas burguesas regadas a trabalho, sexo e drogas que tornam-se tão automáticos que perdem o propósito.  A única reação a isso é a busca por uma catarse, que enche de medo aquele que a vivencia, que o questiona e que, espera ele, no final o transfigure com novas lições que o deixem com mais respostas do que tinha antes.

Afinal de contas, esse é o paradigma do cinema narrativo: se não é para o indivíduo se superar, não há porque fazer o filme. Por que alguém tentaria fazer um filme sem sentido? Por que alguém ousaria ampliar o foco das lentes, desmanchar as certezas e mostrar o cinema todo como uma grande construção sensorial de luz, sombras e ruídos, quebrando a narrativa clássica no processo? Porque o cinema que perdera o sentido (mesmo a toda-poderosa Hollywood estava em rota de colisão com o fracasso) precisaria se reinventar para não ser extinto enquanto arte. A televisão já havia chegado; a pintura tornava-se cada vez menos figurativa e mais abstrata; por que, pergunta a geração de Antonioni, seria o cinema uma arte suspensa no tempo e no espaço? De forma nenhuma; o cinema como arte do século vinte nos reflete, reflete nossas questões, reflete nossas narrativas, nossos valores e nossas transformações. A incerteza no pós-Guerra surgia como uma necessidade e a crítica enternecida de Antonioni àquela geração, mesclando a desconstrução do cinema burguês com amor e conhecimento pelo mesmo, tornou-se um ícone definitivo daquela década. Aquela geração se viu em Blow-Up - e não à toa o filme lucrou mais de 10 vezes o que custou e tem uma aura de culto em seu entorno até hoje.

O filme mais reconhecido de Antonioni, apesar de ser feito para falar de uma geração tão específica, continua com uma força atual e pungente; ainda que as questões das próximas gerações tenham suas diferenças, todas lidam com protoverdades, construções frágeis de realidade e tentativas de narração para afirmação de valores. Blow-Up - Depois Daquele Beijo destruía tudo aquilo a favor do questionamento e da revisão da própria vida. Dessa vez, Antonioni casou silêncio e barulho, placidez e apreeensão; foi ao cinema e voltou de lá com perguntas tão impossíveis quanto importantes de se responderem. O status de clássico lhe é quase estranho; o que seria o clássico que não uma construção nostálgica? Portanto, creio que o adjetivo superlativo aqui é essencial; para o cinema enquanto arte, para a narração enquanto modelo de reflexão, para o espectador em como pessoa. O que realmente queremos ao assistir um filme? Certezas ou perguntas? Ou quem sabe, talvez, uma ampliação e revelação de nós enquanto contempladores de dramas alheios, descortinamento interminável em seu propósito de se construir sentido? 

De qualquer maneira, resta apenas uma certeza: depois de Antonioni, o cinema dificilmente seria como antes.

Comentários (2)

Josiel Oliveira | quarta-feira, 06 de Julho de 2016 - 19:28

Não tinha conseguido parar pra ler essa crítica ainda, mas porraa.. Foda!
Uma crítica que realmente faz a diferença!
Contextualização na vida e obra do autor, na evolução da sua estética, contextualização social e filosófica da época.
As referências: Eu não sabia da existência desse fotógrafo que inspirou o personagem, e muito bom saber qual é o conto do Cortázar que inspirou o filme, bem como a inovação da sua estrutura narrativa... muito interessante, vou procurar saber mais.
Muito legal essa metáfora com a ampliação da imagem também, como uma ampliação do olhar a essa juventude.
Quando eu assisti o filme, o interpretei como uma exaltação a esse hedonismo, e não uma crítica (ok, fui ingênuo em se tratando de Antonioni rs), e por isso me pareceu risível, hipster no úrtimo, e inclusive, tenho certeza que muitos dos que hipsters que conheço que "amam" esse filme também enxergaram dessa forma.
Ler essa crítica enriqueceu minha visão sobre o filme, e até sobre o Antonioni.
Obrigado Brum!

Daniel Mendes | quinta-feira, 04 de Agosto de 2016 - 00:04

Filme que nunca me agradou completamente, mas que sempre rende críticas pra lá de instigantes. Em Antonioni os temas, as reflexões e alguns momentos esparsos sempre me parecem mais interessantes que o resultado na tela. No fim acho cinema gourmet de burguês deslocado e metido a besta.

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