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Críticas

Cineplayers

Financiado por cerca de 450 pessoas no Kickstater, Blue Ruin ultrapassa certas questões de gênero.

8,0

Uma das grandes satisfações com cinema é tropeçar por aí com filmes que, embora de gênero, são trabalhados engenhosa e criativamente a partir desse gênero, para fazer soar a voz do artífice por trás de um terreno previamente mapeado. Blue Ruin conquistou um modesto prêmio no festival de Cannes de 2013 e continua muito pouco falado por aqui, muito embora a crítica americana já tenha mencionado o filme em muitas listas dos melhores filmes do ano passado.

Se em termos gerais os filmes de vingança apresentam um protagonista num estado de perda irreparável tamanho a ponto de provê-lo com uma capacidade de asburda insuperação, em Blue Ruin esse estimulo é um mero desejo desajeitado que te joga contra um beco sem saída cada vez mais apertado.

A trama do filme de Jeremy Saulnier se desenha aos poucos e revela, com economia de diálogos, um ciclo de violência que é construído como se um labirinto brotasse inexplicavelmente do chão, colocando Dwight num caminho intricado e complexo que leva a lugar nenhum.

Os pais de Dwight foram assassinados pelo patriarca da família Cleland, uma daquelas trupes caipiras verdadeiramente psicopatas, aparentemente porque o pai de Dwight estaria se relacionando com a esposa do Senhor Cleland (o assassinato da mãe foi um mero acidente; ou talvez não). Com o pai enfermo, Wade Cleland assumiu a culpa pelos assassinatos em seu lugar e após dez anos é agora um homem livre.

Somos apresentados a Dwight através duma sucessão de cenas sem diálogos e sem grandes explicações. Ele vive em um carro azul parcialmente destruído, comendo do lixo, fazendo fogueiras e invadindo casas de família para tomar banho. Claramente sem ambições, ele parece apenas aguardar a liberação de Wade, para poder realizar seu ato de vingança.

Um outro ponto bastante comum em filmes de vingança é que a trama do filme geralmente envolve o ato de vingança em si. Mas em Blue Ruin, Dwight consegue matar os assassinos de seus pais (numa das cenas de assassinato mais peculiares da história do cinema americano) nos primeiros vinte minutos.

A repercussão de cada assassinato parece interessar muito mais a Saulnier. Ao assassinar Wade, Dwight dá continuídade a uma guerra particular entre a família Cleland e a sua própria (ele possui uma irmã e duas sobrinhas). A lógica da mútua agressão de talião não funciona muito bem aqui, pois o processo de violência para Saulnier, quando desencadeado, é irracional, pirado.

Por isso mesmo aparentemente há dois círculos trabalhados em Blue Ruin. O primeiro é de fato um círculo, que vai, volta e depois vai de novo, agressão após agressão, consumindo a vida do americano comum que o filme retrata. Mas o outro é, na verdade, uma espiral. É o caminho percorrido por Dwight em direção a uma extinção completa de si mesmo.

No começo do filme ele é um mero ermitão. Sujo, peludo e silencioso, satisfazendo as condições meramente básicas para a sobrevivência de um ser humano. Porém, ele ainda era um personagem. Morte após morte, Dwight deixa cada vez mais de ser um personagem e se torna o reprodutor eficiente da mesma violência inexplicável e feroz que o traumatizou. Seus resquícios de emoção e empatia são mínimos, quase imperceptíveis, diante do anseio incontrolável de por fim àquela história toda.

Grande parte da história de Blue Ruin acontece, é verdade, após o assassinado de Wade Cleland. Dwight e sua irmã suspeitam, com certa razão, que os demais irmãos Cleland possam querer agredir as crianças e a irmã, que não tem muito a ver com a história. Mas existem motivos suficientes para pelo menos desconfiar da justificativa do protagonista. Estamos diante de um homem sem trabalho, sem lar e sem objetivos, um homem que esperava morrer junto com seu ato de vingança mas que, por um acaso, permaneceu vivo, obrigado a se olhar no espelho e a se perguntar: “e agora?”.

A cada tiro de revólver, o eco sozinho é capaz de desmaterializar um pouco da humanidade de cada personagem em Blue Ruin. Este é um filme que acontece em florestas, ranchos e beiras de estradas. A América não é aqui retratada através de metrópoles prósperas recheadas de multidões de pessoas, mas como um rastro de sangue que percorre uma longa estrada estendendo-se até o infinito. Cada marca de bala feita na parede, no carro ou no corpo de alguém é testemunha agonizante dum processo que coloca o homem como escravo de uma violência. Uma violência que não é gerada pelo trauma, mas despertada por um mínimo tremor, escancarando o que havia de dormente em cada um de nós.

Comentários (3)

Felipe Ishac | quarta-feira, 22 de Abril de 2015 - 20:34

Muito bom o texto Bakunin. Filme foda pra caralho tbm

Marcelo Queiroz | quarta-feira, 06 de Janeiro de 2016 - 19:53

Assisti hoje, depois de uns dois anos de atraso, mas valeu a pena. Confesso que esperava mais, porém, por não conhecer Saulnier, até que ele me surpreendeu..

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