Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

"Quem tiver de sapato não sobra".

7,5

O dispositivo central de A Cidade é uma Só?, primeiro longa de Adirley Queirós, estimulou uma série de discussões formais sobre sua própria concepção, especialmente por evidenciar o processo de produção nas próprias imagens e estabelecer abertamente um choque entre personagens inventados e a realidade das ruas de Brasília (mais aqui e aqui). Um método que, felizmente, era superado pelo próprio filme, pois suas verdadeiras forças se esquivavam de qualquer deslumbramento pelo fetichismo estético ou narrativo, e tornavam este dispositivo a faísca para uma explosão de discurso que estabelecia um questionamento da realidade brasileira sob forte posicionamento político. A história sobre a criação de Brasília e o processo de higienização das ruas da capital nacional que gerou a construção da cidade satélite da qual o filme se projeta (a Ceilândia, local de residência do cineasta), não eram simplesmente retomadas como pesquisa e leitura de um processo histórico do passado, mas sim evocadas para registrar, através das intervenções ficcionais, os efeitos desta opressiva decisão política na vida de milhares de pessoas que ainda sofrem consequências deste processo. 

Branco Sai Preto Fica, novo filme de Adirley Queirós, propõe ao mesmo tempo uma extensão e uma reavaliação deste método de criação, e simultaneamente transcende e contrapõe tudo que poderia ser esperado de uma sequência do seu projeto de cinema. Estamos muito distantes da fluência e da mobilidade de A Cidade é uma Só, um filme de luz, quase em sua totalidade filmado nas ruas da Ceilândia e de Brasília, num embate político em campo aberto, triste, mas ao mesmo tempo esperançoso. Ao contrário disso: Branco Sai Preto Fica é um filme claustrofóbico e sombrio, sobre vidas amputadas e marginalizadas, excluídas não apenas de um processo social (a construção de um bom lugar pra morar), mas também de uma ideia de coletividade social e fílmica, pois não há mais possibilidade destas vidas se misturarem ao movimento da cidade. Aos atores, habitantes de quartos escuros e porões que se transformam em bunkers revolucionários, é proposta uma fabulação de sua própria vida, permitindo a estes homens marcados, através das liberdades criativas da ficção e inseridos em uma trama sci-fi, uma possibilidade iminente de vingança; uma forma de romper esta amputação da realidade e lhes conceder uma chance concreta de agir contra ela.

A melancolia já era uma sensação muito forte em A Cidade é uma Só, mas o trabalho de encenação em Branco Sai Preto Fica e toda a carga de sofrimento apresentada pelos personagens estabelece uma profundidade melancólica ainda mais deprimente, apesar de todo bom humor com que Adirley filma mais uma vez. Os cenários decadentes e o trabalho de fotografia apenas com pontos de luz diegéticos, sem iluminação externa aos planos, geram uma ambientação incômoda, própria de uma realidade distópica para a qual não parece haver outra solução que não a vingança anárquica, pois toda estrutura social que envolve os personagens é obscura e oprimente ao ponto de parecer incorrigível. A Brasília de Branco Sai Preto Fica é uma cidade de ficção-científica, essencialmente kafkiana, que ilustra um sentimento de não-pertencimento próprio das periferias, uma segregação imposta covardemente que segue em discussão pelo cinema político de Queirós. Neste contexto, cada cena sobre a memória e a cultura das periferias é revestida por uma carga de melancolia que representa com muita intensidade todas as dúvidas e afirmações do cineasta. 

Se em A Cidade é uma Só? o cinema se configurava como um mecanismo que possibilitava a Adirley discursar livremente sobre a realidade, estabelecendo este discurso através do conflito híbrido de invenção e documentário, em Branco Sai Preto Fica o cineasta joga com outro ideal. A vingança histórica não se constroi apenas pela visão política que apresenta, mas também na própria construção e resolução da trama, distribuindo os personagens em uma história de ficção-científica articulada em torno de suas presenças, de suas sensações, angústias e desejos, todos eles importados de vivências reais. O hibridismo entre verdade e ficção sofre uma implosão tão contundente que a realidade apresentada em tela já não é mais a nossa, e sim uma representação de mundo com os dois pés no campo da invenção, porém, por conta dessa liberdade, com ainda mais potência para o posicionamento político. As dúvidas e certezas implantadas por A Cidade é uma Só?, que fascinaram tantas discussões sobre o filme, são definitivamente suplantadas, enterradas, pois elevadas a um outro status de representação. Sem demagogia ou falácias: com o discurso já explanado, Adirley afirma que agora é sim a hora de agir, de botar fogo na porra toda. Brasília queima, e quem tiver de sapato não sobra.

Visto na 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Comentários (5)

Francisco Bandeira | sábado, 01 de Fevereiro de 2014 - 20:54

Crítica maravilhosa! \"Sem demagogia ou falácias: com o discurso já explanado, agora é sim a hora de agir, de botar fogo na porra toda\". [2]

Diogo Serafim | domingo, 02 de Fevereiro de 2014 - 00:30

Ainda não assisti nada do Adirley, mas se seus filmes forem tão bons quanto as duas críticas que o Dalpizzolo nos apresentou, ele deve ser realmente sensacional.

Rodrigo Torres | domingo, 02 de Fevereiro de 2014 - 18:34

\"ÔôÔ, o Daniel voltooou!\"

Faça login para comentar.