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Críticas

Cineplayers

O grito que não alarma.

6,0

É interessante parar e pensar que, nos primórdios da história da humanidade, o Egito tenha sido uma potência mundial e uma nação à frente de seu tempo, enquanto hoje se resume a um local em constante decadência econômica, religiosa e social. A revolução que abalou o país em janeiro de 2011 só fez lembrar ao resto do mundo que ele ainda existe, e está pior do que nunca – não apenas por questões governamentais, mas principalmente por anos de repressão ao povo, em especial às mulheres, sob o cego e muitas vezes cruel regime muçulmano. Sentindo a pressão aumentar a cada dia à sua volta, o cineasta Mohamed Diab previu que cedo ou tarde uma revolta estouraria por lá, e antes mesmo da revolução começar, ele já estava rodando um filme sobre os abusos que toda mulher egípcia tem de enfrentar diariamente, e aproveitou o destaque negativo que o país ganhou nos últimos tempos para lançar sua produção no mercado ocidental.

Em Cairo 678 (678, 2010) temos três histórias sobre três mulheres de diferentes classes sociais e formações no Egito moderno, que sofrem constantemente com algum tipo de abuso. Seba (Nelly Karim) é violentada durante um jogo de futebol e decide depois disso se tornar uma ativista em prol dos direitos femininos; Fayza (Bushra Rozza) é uma dona de casa submissa às leis do país, mas que todo dia é molestada dentro de um ônibus por diversos homens; e Nelly (Nahed El Sebaï) é uma moça ainda jovem, noiva de um bom rapaz, que decide ir à justiça para processar um caso de assédio sexual. Com o desenrolar de cada uma dessas tramas, cada personagem tomará um rumo próprio para lidar com seus problemas.

O filme apresenta, a partir dessas três personagens, algumas “soluções” que podem ser tomadas quando uma mulher é abusada. Seba recorre à ideia de superação, e decide usar seu exemplo como alerta para outras moças; Nelly acredita que pelos tramites legais conseguirá fazer justiça; e Fayza acaba perdendo o controle e ataca com uma faca todos os homens que se aproximam com más intenções.

Apesar de interessante essa ideia de apresentar diferentes reações diante de um mesmo problema, Diab em momento algum usa isso com algum objetivo prático. É como se ele não defendesse nenhuma das alternativas e apenas as apresentasse, se mostrando indiferente a um tema que implora pela a atenção de todos. Em vista disso, paira no ar uma sensação incômoda de que nem o próprio diretor se conscientizou da situação das suas personagens. Seria a violência de Fayza a solução definitiva? Ou a luta pela moral e ética de Seba o caminho correto a seguir? Vale a pena lutar pelos seus direitos, assim como Nelly, em um país dominado pela injustiça? Nenhuma dessas questões levantadas é satisfatoriamente resolvida.

Recentemente, muitos cineastas orientais têm usado o cinema como forma de manifesto, como um tipo de grito de socorro, como é o caso do excelente trabalho experimental do iraniano Jafar Panahi em Isto Não é Um Filme (In Film Nist, 2010), no qual a censura ao cinema do Irã é questionada severamente. São trabalhos que não podem dar pra trás, corajosos, e que devem mergulhar de cabeça em suas denúncias – afinal, uma vez lançado o filme, as conseqüências podem ser sérias para seus realizadores; então já que é para sofrer por conta disso, que seja através de um trabalho ousado do início ao fim. E é nesse ponto que Cairo 678 escorrega. Sua premissa interessante, seus questionamentos a respeito da religião muçulmana e todo o machismo que a domina, tudo acaba sendo amenizado depois de um começo interessante – o oposto do que ocorre em trabalhos incisivos e corajosos como A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) – dando a infeliz impressão de que Mohamed Diab acabou amarelando diante das possíveis conseqüências que poderiam surgir depois de lançado seu projeto. Por conta disso, a mensagem central de seu filme perde a maior parte da força, o espectador não se comove diante do grito de socorro daquelas mulheres retratadas ali (por mais horrenda que seja a situação de cada uma delas) e o que deveria ser um grito alarmante, soa como um sussurro reprimido.

Não se pode culpar Mohamed Diab caso de fato tenha lhe faltado coragem. Afinal, não é fácil bater de frente com os costumes muçulmanos arraigados no Egito, que não se preocupam nem um pouco com os direitos humanos. A revolução popular do ano passado só mostra o quão violenta e instável é a situação do país. O grito de socorro então acaba sendo outro – não o das mulheres abusadas diariamente por lá com a aprovação e indiferença da lei, mas sim o de um cineasta cheio de boas intenções, mas receoso diante das conseqüências de sua própria arte. Esse grito acaba sendo o mais audível e cruel no fim das contas.

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