Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O horror além da tela.

6,0
No plano de abertura de Cam (idem, 2018), o diretor Daniel Goldhaber foca em uma transmissão de vídeo ao vivo de uma garota que faz o que lhe é pedido pelos internautas a fim de conseguir mais visualizações e subir seu ranking em uma espécie de pódio de popularidade de um site semi pornográfico. Conforme os pedidos vão ficando mais quentes, o quadro vai expandindo e explora o quarto dela, as telas do navegador, os chats, e tudo o que rodeia a garota tanto no plano on-line quanto no off-line. Goldhaber deixa claro logo de cara que sua intenção é analisar o entorno e os contextos que absorvem a geração atual em sua fixação mórbida pela autoimagem e pela necessidade de ser notada. 
Cam vai um pouco além do que filmes desse novo seguimento de “terror online” vão – tanto em abordagem como na questão técnica mesmo. O diretor aqui é mais talentoso do que a média e procura formas de explorar a linguagem internauta e torná-la orgânica dentro dos seus mecanismos de filmagem. Inúmeras cenas são arquitetadas dentro de uma configuração de tela de computador, com imagens e conversas dividindo espaço no quadro, falhas de transmissão na imagem e no som, luzes azuladas etc. Ao mesmo tempo, ele não se vê refém disso e adota um tom mais formal e naturalista quando a protagonista está off-line. Nesses momentos, Goldhaber demonstra interessante e sofisticada virtuose em inúmeros planos-sequência, travelings e câmeras giratórias. 

A protagonista Alice, que na internet adota o nome de guerra de Lola, é o extremo da obsessão pela própria imagem. Seus shows eróticos não raro se encaminham para um ponto em que o público, já desinteressado pelas simples insinuações sexuais, exige violência, seu sangue e até mesmo uma simulação de sua morte ao vivo. Ela não se refreia de atender aos pedidos, e inclusive se alegra que nos momentos de “suicídio” seus índices disparam. Mas Alice não está sozinha e trilha uma acirrada competição com dezenas de outras garotas do mesmo site que vão cada vez mais baixo a fim de roubarem para si a atenção do maior número de visualizadores possível. Após comemorar a quebra de um recorde pessoal, a garota passa para o extremo oposto ao perder quase todo seu público para outra mais ousada e permissiva. Nessa montanha russa de números crescendo e descendo em tempo real e diversas conversas simultâneas se pauta toda a estabilidade emocional da protagonista, que longe de uma tela de computador não passa de um zumbi seguindo uma rotina desinteressante e sempre pensando nos truques para atrair mais homens para seu próximo show. 

Goldhaber faz dessas instabilidades do mundo virtual seu grande twist, elevando sua protagonista para depois rebatê-la de volta ao chão, jogando-a como um fantoche à mercê de indicadores e algoritmos, até chegar ao momento de inserir o suspense quase sufocante, quando Alice/Lola tem sua conta hackeada por uma sósia, que assume seu lugar no show e demonstra ter muito mais talento e apelo. Sem se preocupar em explicar como a tal sósia tem acesso livre à casa de Alice nos momentos em que a própria se encontra lá, o filme simplesmente toca em frente em um espiral de loucura regido pela câmera inquieta do diretor. Não há tempo para explicações, apenas ações. 

É uma pena que essa dinâmica e interesse gerado pela ótima primeira hora acabem resvalando nos clichês de qualquer típico thriller de paranoia e perseguição, desses em que uma pessoa sozinha tem de enfrentar o mundo sem ajuda de ninguém para provar que não é louca. Perde-se a oportunidade de fazer um recorte mais interessante sobre os verdadeiros males por trás das situações, a obsessão que existe no mundo virtual pelo extremo, pelo chocante, pelo ultrajante, pela autopromoção a qualquer custo – mesmo que envolva a banalização do sexo, da mulher e da própria vida. Em tempos em que existem de verdade jogos online que incentivam o suicídio, assim como novas formas de prostituição, pedofilia e exploração sexual, o horror implícito do argumento sustentaria facilmente um filme que de fato abraçasse esses temas sem medo. 

Garante o saldo positivo sobretudo a noção de espaço do diretor, sempre reconfigurando suas imagens e seus ângulos, até chegar no momento do clímax, com webcams e espelhos se refletindo e multiplicando a figura da protagonista e da sósia, reforçando assim também a discussão sobre a perda da identidade no mundo virtual, onde as pessoas adotam alter-egos e os assumem de uma tal forma que acabam em dado momento se vertendo de fato em outro alguém. Nesse combate final entre o real e o virtual, a garota verdadeira e seu duplo, Alice e Lola, Cam mostra que a verossimilhança já não é mais necessária nesse universo em que a verdade é tão variável quanto um algoritmo qualquer. 

Comentários (1)

Faça login para comentar.