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Críticas

Cineplayers

A plateia como refém de Paul Greengrass.

8,0

O cineasta britânico Paul Greengrass é hoje uma das maiores referências quando se fala em estilo cinematográfico. Ainda que a sua forma de filmar desperte o ódio de alguns, é inegável que boa parte das produções recentes – especialmente os thrillers e exemplares do gênero ação – têm inspiração direta no estilo que Greengrass consolidou na década passada, em filmes como Domingo Sangrento (Bloody Sunday, 2002) ou nos dois últimos representantes da trilogia Bourne: a câmera sempre em movimento para transmitir nervosismo e uma busca constante pelo realismo das situações.

Seu descaso por um tripé causa enjoos e vertigens em muitos, porém, é difícil afirmar que não se trata de um recurso eficiente. Todos os seus trabalhos são verdadeiros exercícios de tensão, definição que também pode ser aplicada a este Capitão Phillips (Captain Phillips, 2013). Adotando mais uma vez a proposta de tornar sua narrativa real para o espectador, Greengrass começa seu trabalho mais recente sem quaisquer créditos iniciais, preferindo unicamente informar o nome da obra para em seguida partir para a ação. Essa economia narrativa, presente em toda a obra, é fundamental para que o cineasta atinja seu objetivo: desde os primeiros minutos, a plateia percebe estar diante de um filme que transcorrerá sem afetações ou excessos, preferindo investir na naturalidade.

Greengrass, ao lado de seu roteirista Billy Ray, cumpre a promessa. Mesmo que quase resvale ocasionalmente em um momento deus ex machina, Capitão Phillips é um filme que evita momentos grandiosos ou diálogos expositivos capazes de soarem artificiais em tela. O cineasta utiliza a trilha de forma pontual e precisa e boa parte do passado dos personagens principais permanece um mistério para a plateia; sabemos apenas o que é necessário para que eles se tornem pessoas complexas, multifacetadas, e não apenas protagonistas unidimensionais. Com isso, o cineasta consegue transformar toda aquela situação em algo real, plausível, o que – somado à identificação do espectador com o personagem de Phillips, como comentarei mais adiante – gera o sentimento de tensão pretendido.

E que tensão! Sem medo de abusar da câmera inquieta, dos diversos cortes e dos closes no rosto dos atores, Greengrass faz de Capitão Phillips um daqueles filmes capazes de deixar o espectador com os músculos retesados durante toda a projeção. Nas mãos de Greengrass, o estilo de câmera tremida – que se tornou um vício irritante em outros cineastas – funciona de modo magistral, ressaltando o nervosismo e a verossimilhança da história. Há sempre a sensação de ameaça, a dúvida sobre como tudo aquilo irá se resolver – e isso, para um filme baseado em fatos recentes, é uma conquista magnífica.

A sequência da aproximação dos piratas ao navio, por exemplo, é um primor de execução, começando de maneira calma e contida para aos poucos crescer em intensidade à medida que o pequeno bote se aproxima. É na segunda metade do filme, porém, que o cineasta demonstra toda sua capacidade de apertar o pescoço do espectador: explorando de forma louvável o reduzido espaço do bote, Greengrass faz a plateia sentir todo o calor e o desespero de Richard Phillips, preso naquele minúsculo artefato com um grupo de criminosos imprevisíveis. A passagem ocupa um longo trecho de produção, e são poucas as vezes em que o cineasta deixa a plateia respirar ou relaxar, levando a um clímax angustiante como ainda não se viu este ano nos cinemas.

Claro que boa parte dessa tensão se deve ao fato de a plateia acreditar que aquelas são pessoas de verdade, de carne e osso, o que facilita a identificação com Phillips, os tripulantes e até mesmo – por que não? – com os piratas. Construído por Greengrass, Ray e Tom Hanks, o capitão revela-se um homem sério, eficiente em seu trabalho e extremamente perspicaz. Quando se vê diante de uma situação com a qual não sabe como lidar, ele não age como um super-herói, buscando partir para o confronto: pelo contrário, tenta manter a calma e convencer os piratas na conversa e na inteligência. Aliás, nas poucas vezes em que reage fisicamente, Phillips o faz de modo desajeitado, quase patético. O que se vê, portanto, não é Indiana Jones ou Jason Bourne, mas apenas um homem comum, com o qual a plateia consegue se relacionar exatamente por se imaginar agindo de forma semelhante.

E no papel de Richard Phillips, Tom Hanks tem uma das grandes interpretações de uma já espetacular carreira – ao menos, a melhor na última década. O roteiro pouco oferece sobre o passado dele e Greengrass se aproveita da persona do ator para gerar empatia, ao mesmo tempo em que Hanks consegue compor um personagem multifacetado, que precisa tentar manter uma aparência segura, mas não deixa de revelar medo e vulnerabilidade. O ator alcança esse objetivo sem visíveis dificuldades, com um trabalho maduro, que abrange uma série de emoções durante as pouco mais de duas horas de produção, sempre com domínio total sobre seu ofício. A cena final, por exemplo, apresenta um trabalho magnífico de Hanks, com toda essa gama de sentimentos vindo à tona ao mesmo tempo – e ele mereceria sua sexta indicação ao Oscar nem que fosse apenas por essa cena.

Mas Capitão Phillips não é um filme de um personagem só. O antagonista vivido por Barkhad Abdi é, de longe, a grande surpresa da produção. Dono de um passado misterioso – ainda que o roteiro dê algumas dicas sobre suas origens –, Muse é o contraponto perfeito ao capitão de Hanks: seguro de si, perigoso, mas consciente de ter se metido em algo muito maior do que poderia ter controle, o personagem surge aos olhos do espectador não apenas como um vilão unidimensional, mas como um ser humano completo, com suas dúvidas, dilemas e até mesmo um pouco de humanidade. E Abdi transmite essas percepções de modo natural, sem jamais deixar de lado o aspecto ameaçador de seu personagem, mesmo com seu físico nada intimidante.

Interessante notar também como Greengrass estabelece, desde a sequência da abordagem dos piratas, um verdadeiro duelo entre Phillips e Muse. Ali estão os dois líderes de seu grupo, ambos descobrindo a melhor forma de lidar com a situação em que se veem envolvidos e, acima de tudo, tentando entender o “adversário”. Nesse sentido, as poucas informações sobre o passado dos personagens funcionam de modo certeiro, repassando essa dúvida também para a plateia. O cineasta e o roteirista montam quase um jogo de gato e rato entre os dois e a dinâmica entre Phillips e Muse – ou, mais precisamente, entre Hanks e Abdi – acaba se tornando um dos pontos altos do filme.

É possível encontrar em Capitão Phillips um comentário sobre a política mundial e a relação entre países desenvolvidos e países de terceiro mundo, tanto na forma como retrata os objetivos dos somalis quanto pela abismal diferença de poderio entre a Marinha norte-americana e os despreparados piratas. Ao final, porém, o filme é “apenas” um thriller executado com incrível competência, que atinge todos os seus objetivos de fazer o espectador se sentir naquele inferno junto a Richard Phillips.

Tornar-se refém do talento de Paul Greengrass, quem diria, não é um mau negócio.

Comentários (14)

Camila Gomes | domingo, 01 de Dezembro de 2013 - 14:41

Excelente crítica Silvio. (y) ;)
E super concordo sobre as interpretações de Tom Hanks e Barkhad Abdi.
Confesso que me surpreendi com o personagem \"Muse\". Apesar de previsíveis, eu achei graça de alguns dos seus diálogos sarcásticos sobre os EUA.

Robson Nakazato | terça-feira, 03 de Dezembro de 2013 - 14:04

Aposto minhas fichas que o filme seja indicado ao Oscar nas seguintes categorias: Filme,Diretor,Ator,Ator Coadj.,Roteiro,Montagem/Edição (já tenhos absoluta certeza),Som e Efeitos Sonoros. Vamos esperar no inicio do ano que vem.

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